terça-feira, 7 de junho de 2011

Mário Lisboa entrevista... Guilherme Filipe

Olá. A primeira entrevista do blogue "Mário Lisboa entrevista..." é com o ator Guilherme Filipe. Desde muito cedo que se interessou pela representação, tornando-se num dos mais reputados atores do panorama artístico português, com um percurso que passa pelo teatro, pelo cinema e pela televisão (onde entrou em produções como "Duarte e Companhia" (RTP), "Desencontros" (RTP), "Primeiro Amor" (RTP), "Vidas de Sal" (RTP), "Filhos do Vento" (RTP), "A Grande Aposta" (RTP), "Os Lobos" (RTP), "A Lenda da Garça" (RTP), "Olhos de Água" (TVI), "Morangos com Açúcar" (TVI), "Mundo Meu" (TVI), "Fascínios" (TVI) e "Flor do Mar" (TVI), e em 2011 celebra 30 anos de carreira. Além da representação, também é professor, e, recentemente, participou na mini-série "O Dom" que foi exibida na TVI. Esta entrevista foi feita no dia 29 de Outubro de 2010 no Hotel Mercure no Porto na altura em que o entrevistado estava em digressão com a peça "Uma História de Dois" que protagonizou ao lado de Teresa Guilherme.

M.L: Como é que está a correr a peça “Uma História de Dois”?
G.F: Está a correr bem. Vamos terminar no dia 31 de Outubro, aqui no Porto. Depois, teremos ainda vários espetáculos, em Novembro, na zona centro, e terminamos na zona sul.

M.L: Quais são os próximos locais que a peça vai passar?
G.F: Figueira da Foz, Santa Comba Dão, Condeixa, Tomar, Portalegre, Nisa e Beja. Acho que é mais ou menos por esta ordem.

M.L: “Uma História de Dois” é um original do espanhol Eduardo Gálan. O que o levou a aceitar o convite para participar na peça?
G.F: Em primeiro lugar, trata-se de uma produção da DRAMAX, a empresa do Celso Cleto, sediada em Oeiras, com quem tenho vindo a trabalhar. Este é o terceiro espetáculo que eu faço. Por outro lado, esta peça tem interesse pela própria história, uma personagem com muito interesse, daquelas que motivam o trabalho de qualquer ator. Além disso, trata-se de um original espanhol, que ainda não foi estreado em Espanha. A sua estreia absoluta acontece em Portugal, o que também é motivo de interesse acrescido.

M.L: Já trabalhou anteriormente com o encenador da peça Celso Cleto. Como é trabalhar com ele?
G.F: O Celso Cleto é um encenador com experiência. Foi inclusivamente subdiretor do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, quando o diretor era Carlos Avillez. E, como encenador, tem também trabalhado em Espanha, dirigindo outras peças de Eduardo Gálan, que acabou por trazer para Portugal, como "A Curva da Felicidade". É um profissional com créditos, que se especializou num tipo de teatro comercial cujo interesse reside na problemática dos enredos que apresenta, retratando situações com as quais o público em geral sente afinidade. Foi o caso da peça "Miss Daisy", galardoada com um Prémio Pulitzer, com que iniciei a minha colaboração artística com o encenador Celso Cleto, mas também de "Uma História de Dois".

M.L: Nesta peça, interpreta Carlos, um professor viúvo que anseia pela reforma antecipada e desenvolve uma amizade com Luísa, uma mãe divorciada de um aluno dele que trabalha num supermercado, e é interpretada por Teresa Guilherme. Como classifica a sua personagem?
G.F: O Carlos é o protótipo de muitos homens de meia-idade dos tempos que correm, não só em Portugal, como em Espanha, como na Europa, e talvez no resto do mundo ocidental, onde obviamente os padrões são os mesmos. É uma figura contraditória, com flutuações de humor do princípio ao fim, cheia de incoerências existenciais, que lhe dão um colorido expressivo à personalidade. É tal a escala de emoções e a paleta de sentimentos que se torna num bombom para um ator e o espectador saborearem.

M.L: Já foi professor tal como a sua personagem. Como é que se sente, quando interpreta um professor?
G.F: Ser professor e interpretar um professor não é a mesma coisa. Representar o papel de professor na vida real é criar a nossa própria ficção no dia-a-dia. Interpretar um professor é mais do que isso, é recriar um outro professor. É no fundo sintetizar numa personagem uma quantidade de professores que tomamos como exemplo por razões diversas, e criar um professor específico, ficcionado de forma realista, que permite que os espectadores (entre os quais alguns professores autênticos) reconheçam, ou se reconheçam, no sujeito retratado. A personagem de Carlos, que interpreto agora, tem obviamente alguma coisa daquilo que eu sou, ou do que eu fui enquanto professor. Comecei a minha carreira docente em 1972, e esse percurso torna-se em uma mais-valia, uma autenticidade que dá credibilidade à personagem que interpreto. Mas a pessoa do professor Carlos da "Uma História de Dois" tem uma realidade que não é a minha e que eu tenho de criar em cena. Chama-se a isto criar um “papel”, ou seja formar uma personalidade cénica, que expressa o pensamento do autor, agindo em mim, através do meu corpo e da minha alma.

M.L: Como é trabalhar com a Teresa Guilherme?
G.F: É muito bom. Juntar dois Guilhermes em palco é desde logo uma coincidência engraçada. Para além dessa curiosidade, a Teresa é uma Profissional, é uma Perfecionista: dois Pontos que partilhamos com muito prazer. Leva qualquer trabalho muito a sério e ainda mais o de atriz…

M.L: É recente.
G.F: É a terceira peça que a Teresa leva à cena. Desenvolveu a sua carreira como apresentadora e como produtora de uma forma tão coerente e bem estruturada que se impôs como excelente profissional que é. Curiosamente, a Teresa transporta e desenvolve as suas capacidades de atriz a partir da sua enorme capacidade de comunicadora. Mas, por outro lado, também constatamos que a Teresa complementa essa sua facilidade pessoal com o estudo de obras teóricas, como as de Stanislavski, que qualquer ator sabe ser importante para desenvolver um método coerente de trabalho. A Teresa não é uma amadora que, de repente, disse: “Olha, vou ser atriz”. Pelo contrário. A sua postura foi a de “Tudo bem, quero passar pela experiência, mas vou formar-me nesse aspeto.”, e é esse o modo de estar que sempre demonstrou.

M.L: Recentemente, fez uma digressão com a peça “Hedda Gabler” de Henrik Ibsen, que também foi encenada por Celso Cleto, que o levou a Madrid. Foi a primeira vez que foi a Madrid, a propósito de um espetáculo?
G.F: Para representar sim, mas para visitar e ver espetáculos não. Tenho ascendência espanhola (sou neto de madrilena), e, por isso, Madrid é para mim uma cidade familiar. A primeira vez que a visitei tinha 9 anos. Conheci alguma coisa pela mão da minha avó, que orgulhosamente me mostrou a sua cidade natal e me disse: “Nós vimos daqui”. Em Madrid, sinto-me em casa. Agora, representar e atuar fora de Portugal é a primeira vez, e foi muito bom, muito gratificante. Nós representamos em português, como não podia deixar de ser, e, por isso, o espetáculo estava legendado, porque a maioria do público era espanhol. Havia também bastantes portugueses que trabalham, ou estudam, em Madrid, com os quais confraternizámos após o espetáculo. Mas, para mim, a maior curiosidade foi ter o feedback dos espanhóis, analisando o nosso trabalho e ouvir: “Entendemos quase tudo, e quando não entendíamos olhávamos a legenda”. Os portugueses acolheram-nos com a saudade própria de compatriotas que estão “fora de casa”, enquanto os espanhóis analisaram o trabalho dos atores portugueses. Éramos profissionais estrangeiros interpretando uma obra conhecida, e as comparações eram feitas a partir da referência de atores espanhóis. Ouvi comentários muito elogiosos de quem não conhecia o meu trabalho anterior; análises profundas à interpretação de cena e à construção do papel. E, aqui para nós, que ninguém nos ouve, senti uma pontinha de vaidade.

M.L: Quando surgiu o interesse pela representação?
G.F: Desde miúdo. Fiz teatro de escola, depois teatro amador e só vim definitivamente para o teatro profissional em 1984, ainda que a primeira experiência fosse "Orpheu", dirigido por Águeda de Sena, no Teatro Aberto (antigo), em 1981. Anteriormente, tinha sido professor de Línguas no ensino secundário, trabalhando também no Ministério da Educação, primeiro como bolseiro e depois como destacado, na formação de professores no Ensino das Línguas Vivas. No final da década de 1970, começara a utilizar-se em Portugal a técnica da expressão dramática no ensino do Inglês como Língua Estrangeira. Convidaram-me para me associar à formação de dois grupos, ao nível dos ensinos secundário e básico. Essa experiência estimulou a necessidade de procurar informação teórica específica e levou-me ao Conservatório de Lisboa (Escola Superior de Teatro e Cinema), onde acabei por tirar um segundo curso. Entre 1984-85, tive a possibilidade de estagiar no Teatro Nacional D. Maria II, sendo nessa altura que optei por deixar de ser professor no ensino oficial, para ser ator profissional, ainda que continuasse ligado à docência. Atualmente, estou ligado à investigação no Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras e ao ensino no curso livre de formação de atores da Universidade Lusíada.

M.L: Mas antes de se tornar num ator profissional, foi professor de Inglês e de Alemão no ensino secundário. Que recordações guarda desse tempo?
G.F: Muito boas. A minha personagem em “Uma História de Dois”, em determinada altura, diz: “Eu gosto de dar aulas”. Tal como eu. Dar aulas, em cima de um estrado a falar para uma pequena plateia, é como um ator em cima de um palco dialogando com o público. A situação é idêntica: educar é transmitir. São ambos atos de comunicação que exigem o mesmo grau de convencimento e verdade. Guardo muito boas recordações do meu passado de professor de Inglês e de Alemão, porque inclusivamente tenho feedback de antigos alunos, agora já homens e mulheres casados, mães e pais de filhos, que me encontram e dizem: “Lembro-me de si. Continuo a vê-lo no ecrã”. É giro, são histórias de vida.

M.L: Ainda na área do ensino, fez várias coisas. Enquanto bolseiro, fundou em 1976, juntamente com Isabel Medina e outras pessoas, o English Teaching Group que foi um projeto-piloto do Ministério da Educação para o ensino de inglês através do jogo dramático.

Na continuação do seu trabalho em investigação pedagógica, fundou em 1980, juntamente com Isabel Medina, Rogério de Carvalho e outros professores, o Grupo de Comunicação e Teatro no âmbito da formação de professores em ensino multidisciplinar, em cujo projeto participou numa adaptação ao teatro de “João Sem Medo” da autoria de José Gomes Ferreira, cuja encenação esteve a cargo do próprio Rogério de Carvalho.

Desde 2000 que tem estado a desenvolver atividade docente, tanto na área do ensino artístico, como na investigação na área de documentação teatral, e, atualmente, faz parte do núcleo de investigadores do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e está a preparar o seu doutoramento em Estudos Teatrais. Orgulha-se dos trabalhos que fez na área do ensino?
G.F: Claro que me orgulho; têm sido coisas muito boas. Quando o trabalho de investigação pedo-didático com os meus colegas de ensino, como o Rogério de Carvalho e a Isabel Medina, chegou ao fim, porque da parte do Ministério de Educação deixou de haver interesse em continuar a apoiar projetos desse tipo, eu percebi que a minha vida não seguiria por aquela vertente. Teria de ser feliz de outra maneira, sem ser a dar aulas de Línguas. Depois do que tinha passado, sentia como um retrocesso, sem qualquer perspetiva de evoluir na área que mais me agradava, a da investigação. Sem esta não há evolução no que se transmite. O ensino pode ser uma atividade rotineira. Por isso, é preciso que, sistematicamente, em qualquer disciplina, em qualquer área, o professor se reinvente, tanto em termos pedagógicos, como em termos didáticos. Não basta tirar um curso, uma licenciatura, é preciso manter-se atualizado, apropriar-se da novidade que surge através da pesquisa, seja nas Ciências Humanas, seja nas Ciências Exatas. Vivemos um tempo de Ciência e da Tecnologia, até nas áreas das Humanidades. Os cientistas são seres humanos que pensam sobre a realidade do seu semelhante, para descobrir aquilo que permita melhorar a vida, no imediato ou a longo prazo, mas são também pessoas que apreciam o lado artístico do quotidiano. A História das Mentalidades reflete o pensamento do seu tempo, assim como de quem o produziu. O teatro, como o romance, e a restante literatura, expressa a mentalidade do momento em que foi escrito, e dialoga com o espectador, como o professor com o aluno, sendo, por isso, ao mesmo tempo pedagógico e didático, com o objetivo de formar consciências. O teatro é de tal forma amplo na sua atuação que precisa ser estudado, nas suas múltiplas vertentes.

M.L: Em 2008, obteve o Grau de Mestre em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com a tese "Percursos Itinerantes: A Companhia de Rafael de Oliveira". Podia explicar-me um pouco sobre esta tese?
G.F: Há ainda muita gente que viu e se lembra da Companhia de Rafael de Oliveira, sobretudo nas cidades de província, por esse país fora, onde essa companhia de teatro animou os serões em muitas coletividades, assim como no seu próprio Teatro Desmontável. Atualmente corresponde a uma realidade desconhecida, que desapareceu após 1974, quando a evolução do país levou à procura de novas realidades profissionais, novos modelos de atuação junto das comunidades.
Tive a sorte de encontrar um neto de Rafael de Oliveira, o Álvaro de Oliveira, que possui um espólio importante de material diverso guardado preciosamente (livros de contas, peças, cartazes, recortes de jornais, etc.). Também no Museu do Teatro, na Biblioteca Nacional, em Lisboa, e em outros arquivos pelo país, fui encontrando mais documentação. Ainda hoje, após terminar a investigação, continuo a ser contactado por pessoas que me indicam documentos que desconheço. Muito recentemente, em Nisa, descobri que a companhia esteve lá, em 1947. Esta informação veio preencher um hiato informativo na minha investigação.
Que importância teve então esta companhia? Estamos a falar da última companhia de teatro de província que houve em Portugal, que existiu entre 1920 e 1975. Foram 55 anos de vida teatral, que passou de avôs, para filhos, para netos; 3 gerações de pessoas que trabalharam e que andaram sempre circulando desde Bragança até Vila Real de Santo António, que viajaram até aos Açores, à Madeira e a Angola. É uma realidade muito curiosa, partilhada com outras companhias do mesmo estilo. Muitas companhias itinerantes existiram ao longo da história do teatro, mas esta foi a última, que não sobreviveu a 1975, quando aquele modelo de funcionamento deixou de fazer sentido. O teatro revitalizou-se, como sempre, noutras formas e noutras pessoas, mas nunca mais houve nenhuma companhia de província, ou seja, um grupo familiar de 14 atores, circulando por Portugal, tendo por sede a localidade onde estavam instalados, por família alargada o povo que os acolhia de braços abertos. Durante cerca de 40 anos, no seu Teatro Desmontável, que instalavam por 3 meses, representaram um repertório de 40 peças, das quais iam selecionando as peças que mais agradavam ao público local. Subiam também ao palco de Sociedades Recreativas, divulgando um teatro de agrado popular, feito de dramas e comédias, como o "Amor de Perdição", a "Rosa do Adro" ou a "Inês de Castro".
Há por isso que fixar a memória dessa atividade artística perdida, dessas companhias donde sairam alguns atores que vieram a pisar os palcos de Lisboa, onde fizeram renome: Leónia Mendes e Camilo de Oliveira, da companhia Rentini; Manuela Maria, que se estreou aos 5 anos no palco da companhia de Rafael de Oliveira, e cujos pais tiveram também uma companhia própria com um teatro desmontável, os Mariquina; Tony de Matos, que foi ponto da companhia de Rafael de Oliveira, e onde se estreou a cantar fado de Coimbra, com 14 anos; Armando Venâncio, descendente da companhia Moiron, que também teve um teatro desmontável. O Manuel Luís Goucha, que todos conhecemos nos programas televisivos, estreou-se como ator no teatro desmontável de Armando Venâncio, o Teatro do Povo, instalado nos terrenos onde hoje se situa o El Corte Inglés de Lisboa. Uma característica própria destes agrupamentos era a sua tipologia familiar, em que os filhos seguiam o trilho dos pais. Não sendo Manuel Luís filho de atores, no fundo, partilhou desse tipo de realidade.

M.L: Em 1986, fundou a companhia Persona-Teatro de Comédia, C.A.R.L, onde exerceu a função de diretor até 1991. O que o levou a querer fundar a companhia?
G.F: Houve um momento em que um pequeno grupo de colegas de Conservatório com quem estava trabalhando ia ficar sem trabalho. Uma noite, em que saímos do ensaio de "À Procura da Tragédia", no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, desafiei o Miguel Menezes, que hoje em dia não trabalha como ator, para formar uma companhia de teatro de comédia. Tínhamos em vista trabalhar o conceito clássico de comédia, não tanto por vontade de fazer graça, mas pelo género dramático, que deu nome aos atores (os “cómicos”) e se tornou sinónimo de teatro e de companhia de teatro, como na commedia dell'arte. Por outro lado, enquanto atores, identificávamo-nos com o nome Persona, como personalidade, e como a máscara do ator. Tudo isto tinha uma dupla ideia subjacente: por um lado, a essência do que sentíamos ser o teatro que gostaríamos fazer como profissionais, e, por outro, na criação de um espaço de trabalho sobre a teatralidade portuguesa, tão pouco abordada por profissionais. Formamos uma companhia, como cooperativa artística, que abordaria exclusivamente teatro de autores portugueses, ainda que nos tenhamos estreado com "O Barbeiro de Sevilha", de (Pierre) Beaumarchais, um texto de rutura, tal como o seu autor, no seu tempo. Juntámos vários nomes, quase todos colegas de Conservatório, alguns dos quais, neste momento, se tornaram conhecidos por outros meios: entre outros, o ator-encenador Paulo Lages, as atrizes Custodia Gallego, Rosa Castro André e Cristina Buero, o ator António Cordeiro, ou ainda Teresa Côrte-Real, atualmente atriz residente no Teatro Experimental de Cascais.

M.L: Mãe de Francisco Côrte-Real.
G.F: Exatamente. Aliás, o Francisco Côrte-Real pisou o palco pela primeira vez, dentro da barriga da mãe, na estreia do Persona. A Teresa Côrte-Real estava no fim do tempo de gravidez e, não havendo nenhuma personagem com essas características (aliás só há uma personagem feminina em "O Barbeiro de Sevilha"), acabou por fazer travestismo, representando um oficial de diligências, no 2º ato da comédia. Era um boneco pançudo e façanhudo, com uns bigodes enormes, a única forma de assumir naturalmente a sua barriga. Às vezes, na brincadeira, costumo dizer: “O teu filho está a dar cartas como galã; mal sabe ele que o ator que existe dentro dele nasceu em "O Barbeiro de Sevilha". Foi o seu batismo simbólico no Persona”. Ele há estreias inolvidáveis, que deixam marcas para a vida. Ironias do destino?

M.L: Porque é que saiu da companhia?
G.F: Eu não saí da companhia. Eu dirigi a companhia até 1991 e depois a seguir continuo, porque nós não somos eternos e há um tempo que nós podemos dirigir e depois há um tempo em que talvez estamos cansados e vão dar lugar aos outros e naquela altura foi o que aconteceu, houve vários percalços pessoais e que eu estava muito cansado e portanto não era bom para a empresa de que éramos todos sócios de repente eu me estar a arrastar e estar a arrastar as pessoas e então expôs isso e disse “Está na altura de eu ser substituído e outro qualquer que está cá dentro é tão válido quanto eu para continuar.” e foi o que aconteceu. A direção foi para outra pessoa, nunca saí, continuei lá, depois de sair da direção houve uma altura em que eu fui fazer umas coisas fora da companhia, mas depois fui lá fazer uma encenação e estive até ao fim. Não na direção, mas para trabalhar sim.

M.L: Mas guarda boas recordações de lá?
G.F: Excelentes recordações. A companhia acabou por uma simples razão: ausência de um espaço próprio - essa foi a razão do fim do Persona. Tornou-se difícil estar sempre a trabalhar em espaços cedidos ou alugados, o que, obviamente, não permitia a estabilidade necessária à continuidade da companhia. O Persona acabou por se dissolver na impossibilidade de dar continuidade ao trabalho que tinha desenvolvido. Foram dez anos consecutivos, apresentando duas produções por ano, subsidiadas pela Secretaria de Estado da Cultura, incluindo algumas digressões pelo país. Por outro lado, começaram a surgir outros projetos que mostravam ser interessantes para os atores. O cinema e a televisão começaram a ser um mercado de trabalho importante e aliciante. Quando o Persona acabou, cada um seguiu o seu caminho. Há tempos, lembrei-me de desafiar alguns elementos para fazermos um espetáculo, como acontece com os músicos de bandas que acabaram e regressam para um encontro de velhos amigos. Não seria para retomar a companhia, mas apenas pelo gozo de estarmos juntos. Aguardemos que as vontades se conjuguem.

M.L: Faz teatro, cinema e televisão. Qual destes géneros mais gosta de fazer?
G.F: O que me dá prazer é representar. Gosto de ser ator e do trabalho que um ator desenvolve, seja em teatro, cinema, televisão, ou até, convém não esquecer, na rádio. Hoje em dia, o pouco teatro radiofónico que se ouve, na RDP, está gravado, já só pertence à memória da rádio, de resto praticamente desapareceu estupidamente. No estrangeiro continua a existir, como trabalho interessante que é, como comunicação através da imagem da palavra.
Há algo que me parece importante transmitir aos alunos das artes de representação: o palco não é mais nem menos do que o audiovisual, são formas de teatro diferentes, de igual interesse estético, desde que bem-feitas. O ator é sempre o mesmo; são as realidades técnicas que distinguem a obra dramática em palco, no cinema, ou na televisão. No audiovisual, o ator não domina o processo. Essa competência é do realizador num primeiro passo, do editor de imagem que lhe sucede, e, no topo da pirâmide, do produtor que investe o dinheiro e faz com que a indústria domine. É ele que define o que é rentável, box-office, para que tenha retorno financeiro que lhe permita produzir outras obras.
O ator domina a interpretação, mas não o processo de construção da narrativa audiovisual, concebida pelo realizador na escolha das escalas e enquadramentos, e pelo editor que “cola” as diversas cenas, constituindo a narrativa definitiva, de cuja respiração o espectador partilha e se emociona. É, por isso, um objeto que passa por muitas mãos.
No teatro, o encenador constrói um espetáculo que é produto de muitas linguagens cénicas, entre elas a interpretação do ator. Como não há dois espetáculos iguais, como não há dois públicos iguais, porque não partilhamos do mesmo estado de espírito todos os dias, a repetição daquele ritual que se encenou, que se ensaiou, torna-se cada dia diferente, forçando o ator a uma grande responsabilidade e criando uma adrenalina maior. Não há hipótese de se ouvir: “Corta, repete!”. O palco faz lembrar os diretos em televisão, sem possibilidade de emenda, ou, como no circo, é estar no arame, sem rede, sem poder olhar para baixo, com medo de cair… O medo despoleta a adrenalina, a tensão mantem-nos atentos, e, no final, a descarga do prazer do trabalho bem feito é enorme. Talvez por isso se diga que quem corre por gosto não cansa. A construção das personagens cénicas faz-se segundo os mesmos processos de criação mental, é o trabalho de qualquer ator, quando decora um texto e cria o papel… Antes de mais, temos de ter gosto por aquilo que fazemos, ter prazer em desenvolver uma ideia e, além disso, possuir conhecimento técnico dos diferentes veículos com que trabalhamos, se queremos ter qualidade no trabalho que fazemos.

M.L: Desde “Desencontros” (RTP) que é uma presença regular nas telenovelas. Este é o género televisivo que mais gosta de fazer?
G.F: Continuo a dizer, gosto muito de representar e invisto nos papéis que faço. A novela é um género curioso, por vários motivos. Desde que se queira, consegue por a cabeça a trabalhar muito mais do que se possa pensar, por uma razão muito simples: enquanto uma série apresenta um todo que o ator conhece desde o início, porque se trata de texto completo à partida, numa novela nunca se sabe como vai finalizar, em virtude da sua extensão, 150, 200 ou mais episódios. Nos primeiros 20 episódios, as personagens definem-se, de modo que o espectador apreenda a personalidade fundamental das personagens nucleares: se é vilão, se é bom, se é um apaixonado. Tudo deve ser definido nos primeiros episódios, para que daí para a frente o espectador possa compreender a vida quotidiana das personagens. A novela tem variações do ponto de vista de escrita à medida que o share das audiências exerce influência. O produtor percebe até que ponto as audiências demonstram maior interesse por determinadas situações, personagens ou núcleos sociais, e esses dados influenciam a continuidade da novela. Se o público deixa de gostar de uma personagem, não faz sentido prolongar a sua existência no enredo, sob pena de perda de audiências e de lucros.

M.L: E aumenta os episódios também.
G.F: Também pode acontecer isso; desde que o público goste e o ator tenha investido na qualidade do seu trabalho. A escrita dramática da personagem é um setor que o ator desconhece, portanto estamos sempre à espera de sermos desafiados a trilhar caminhos que não estamos à espera. O grande jogo para o ator, e a parte mais interessante da novela, talvez seja isso: ser capaz de encaixar as fugas das personagens para caminhos inesperados. Mas, pensando bem, também é algo que nos pode acontecer na vida real. Julgamos estar certos do nosso percurso até ao momento em que, de repente, nos aparece um obstáculo, que nos obriga a mudar os planos.

M.L: Como lida com a carga horária, quando grava uma telenovela?
G.F: Costumo dizer, em tom de brincadeira, que deve ser como estar numa ordem religiosa em convento de clausura: não há tempo para mais nada, a não ser para a devoção. Estamos sujeitos a uma grande carga horária, tanto em estúdio, como fora da gravação; quando regressamos a casa é para estudar os textos do dia seguinte. À sexta-feira recebem-se os planos da semana seguinte e começamos a fazer a parte administrativa: dividir as cenas pelos dias de trabalho, lê-las com atenção, procurar a lógica narrativa, porque não gravamos os episódios em sequência, mas consoante os décors. Podemos gravar cenas do 1º episódio, do 10º, do 15º, conforme a sequência do cenário em que estamos a gravar, o que implica um trabalho específico que as pessoas não se apercebem em casa, depois de ser editado o episódio.

M.L: Um dos seus trabalhos mais marcantes em televisão foi a série “Duarte e Companhia”, que foi exibida na RTP entre 1985 e 1989, na qual interpretou o vilão Lúcifer. Que recordações guarda desse trabalho?
G.F: Foi o meu segundo trabalho, e aquele que me projetou, que me abriu um caminho na profissão. O primeiro chamou-se “Mátria” (RTP), escrito por Natália Correia e realizado por Dórdio Guimarães, duas grandes figuras do panorama intelectual português que infelizmente já morreram. “Mátria” foi um projeto conjunto de uma poetisa e escritora, e um artista plástico.
A experiência do “Duarte e Companhia” foi muito engraçada. Tinha acabado o Conservatório meses antes, estava a trabalhar no Teatro Nacional e, um dia, recebo o telefonema do realizador Rogério Ceitil convidando para o papel de Lúcifer. O meu nome para o papel fora indicado pelo Rui Mendes, que tinha sido meu professor no Conservatório, e acaba por ser o meu “padrinho” na ficção televisiva. A primeira cena de “Duarte e Companhia” que gravei foi exatamente com ele, como forma de apoio de um colega experiente. Supostamente só devia ter feito 3 episódios, mas a figura acabou por ser do agrado do realizador que a prolongou até ao fim.
O “Duarte e Companhia” teve aspetos curiosos: inicialmente, foi uma série muita contestada, que não foi do agrado geral, porque não se percebia se era uma comédia ou uma série dramática, como o “Zé Gato” (RTP), que o mesmo realizador filmara anteriormente. Parecia um disparate pegado. Porém, no fundo, tratava-se de uma paródia às séries policiais, aos sucessos televisivos e cinematográficos da altura: “O Padrinho” (1972) ou a “O Justiceiro” (1982/1986). A paródia é um género de características muito populares, que requer o conhecimento dos referentes que parodia. Naquela altura, na televisão, estavam na moda as séries com artes marciais e de aventuras. Fizemos à portuguesa uma paródia aos heróis bem sucedidos, criando vários tipos de portuguesinhos malandros que querem ser mais do que podem, copiando os modelos importados de fora. O Lúcifer e seus comparsas não passam de um bando de mafiosos falhados sem talento e meios próprios para serem como os grandes mafiosos internacionais. Também a dupla Duarte e Tó, mais a sua assistente Joaninha, não passam de simulacros de detetives privados (os private eyes à americana), a quem falta sabedoria técnica, mas que compensam com o tão típico espírito de desenrascanço à portuguesa. Foi sem dúvida uma das primeiras sitcoms humorísticas nacionais, como as que mais tarde acabaríamos por importar do Reino Unido ou dos Estados Unidos.

M.L: Como foi trabalhar com o realizador da série Rogério Ceitil?
G.F: O Rogério é uma pessoa muito interessante, que conheci nessa altura, e com quem voltei a trabalhar em outras séries. Uma das grandes virtualidades do Rogério era a de ser um cineasta, um cinéfilo, um conhecedor da história da 7ª Arte e da construção do produto cinematográfico. Para mim, é esta faceta que sustenta a delirante inteligência imaginativa, que se reflete na sua capacidade de escrita para o pequeno ecrã, associada à sensibilidade como editor de imagem. Penso que, de alguma forma, foi um injustiçado por causa do “Duarte e Companhia”. As pessoas não lhe deram o devido valor, porque partiram do preconceito de a série não ter valor evidente. Nada mais enganoso, como se provou posteriormente, quando se tornou em série de culto. A chamada “grande cultura” é feita de obras tornadas canónicas por uma elite em determinado tempo, ao passo que a “pequena cultura”, bem mais vasta do que a outra, acaba por perecer com o tempo e a falta de estudo sobre ela. Mas, na verdade, no seu tempo foi essa cultura popular que atraiu as grandes massas e que sustentou uma indústria do espetáculo do seu tempo. Um fenómeno que aconteceu com a literatura, o teatro, o cinema, e que não poderia deixar de acontecer na rádio e na televisão.

M.L: Hoje em dia, já não trabalha tanto como antes.
G.F: O Rogério, tanto quanto eu sei, tem-se dedicado mais à temática documental, em detrimento da ficção. Porém, antes do “Duarte e Companhia”, já o Rogério Ceitil realizara, em 1975, a longa-metragem documental “Cantigamente Nº 4” (RTP), sobre a década de 50 e 60 do século XX. E, em 1979, o “Zé Gato”, uma série policial a sério, com Orlando Costa, como protagonista. Curiosamente, a ideia do “Duarte e Companhia” surgiu no último episódio do “Zé Gato”, por um percalço. Orlando Costa tinha sofrido um acidente, que lhe provocara uma fratura, tendo de ser substituído pelo Rui Mendes, que imprimiu um cunho próprio à personagem do Zé Gato, transformando-a no que viria a ser o Duarte, do “Duarte e Companhia”, cheio de ironia e boa disposição.

M.L: Como vê, atualmente, o teatro e a ficção nacional?
G.F: A televisão funciona como um veículo de comunicação e de divulgação de atores, que pode atrair ao teatro o público desejoso de ver aqueles que viram na televisão. Isso é excelente. Todavia, é pena que esta não funcione como veículo de divulgação do próprio teatro, seja pela transmissão de peças televisionadas, como já aconteceu em tempos passados, seja por uma melhor divulgação do cartaz de espetáculos em horário mais apropriado. Qualquer das possibilidades corresponde às competências cultural e noticiarista da caixinha que mudou o Mundo, antes de se transformar em eletrodoméstico. As televisões exibem os programas de divulgação cultural após a meia-noite. Pergunta-se obviamente para quem. Para quem estiver com insónia? Quem tiver de se levantar cedo para trabalhar, não estará certamente a vê-los. Creio que o melhor espaço para um cartaz de espetáculos, mesmo que breve, seria no fim de um espaço informativo, como o telejornal.
Apesar de tudo, o teatro parece-me estar bem, ainda que toda a gente diga que está em crise. Mas a verdade é que historicamente o teatro sempre esteve em crise, e disso retirou a sua vitalidade. Sempre houve crises económicas e, para sobreviver, os profissionais sempre inventaram formas de ultrapassá-las. Neste momento vive-se uma crise de falta de espaços convencionais, com a demolição de muitos teatros e a dificuldade de atuar nos que se encontram afetos a entidades específicas. Algumas companhias de teatro independente têm contudo servido o propósito de albergar grupos de atores e dos seus projetos individuais, como é o caso da Comuna, da Barraca, ou do Teatro Aberto. Por outro lado, assistimos ao aparecimento de grupos de jovens que criam o seu próprio teatro de pesquisa e experimentação, em espaços não convencionais, que, em tom de brincadeira, eu designaria por “teatro de vão de escada”, ou, inspirando-me na música, “teatro de garagem” (como a ideia assumida pelo Carlos J. Pessoa, em 1989). São tempos performativos de novas contestações e propostas de vanguarda, sem o aparato dos seus antepassados, os grupos do pós-guerra.
Atualmente, pode fazer-se teatro em qualquer sítio que albergue um grupo de espectadores, até ao domicílio, como no século XIX. Os “Commedia a la Carte”, os pioneiros em Portugal da comédia de improviso interativa, criam situações que surgem de propostas do público, em que alguns acabam por ser convidados a subir ao palco e a interagir com os atores profissionais.
Também há alguns anos que o ator Raul Orofino vem desenvolvendo o conceito de teatro ao domicílio. Uma novidade em Portugal, porém vulgar em outras culturas, como na Argentina, onde a vivência teatral é muito grande, existindo qualquer coisa como 300 salas de espetáculo, uma esfera de pequenas salas, de anfiteatros, de pequenos espaços, onde se pode fazer teatro sobre temas do quotidiano. Em Inglaterra, por exemplo, podemos ir almoçar a um pub, em cujo primeiro andar existe uma sala onde se representa um teatro rápido. Carrega-se o tabuleiro com a sanduíche e a cerveja, e almoçamos ao som da comédia dramática.
A proliferação de espaços não convencionais pode ser de grande interesse para um público específico, que permita a exibição de grupos de teatro escolar, de coletividades, ou até de amigos que se juntam por algum motivo especial, mas isso não invalida a necessidade de existência de teatros convencionais, capazes de acolher projetos de maior dimensão e a circulação dos profissionais pelo resto do País. Felizmente, em Portugal, existem equipamentos excelentes. Aqui no Norte, é o caso do Theatro Circo de Braga, dos Teatros Municipais de Bragança e de Vila Real, da Casa das Artes de Famalicão e de tantos outros, construídos de raiz ou fruto da recuperação de velhos edifícios. O Porto também possui diversas salas, e excelentes profissionais, com projetos de formação e divulgação teatral, como o Teatro do Bolhão, do António Capelo, ou escolas de grande interesse, como a ESMAE, a Academia, ou o Ballet Teatro. Mas obviamente que se trata da segunda cidade do país.
Por fim, é preciso começar fazer um trabalho de identificação e divulgação das coletividades que desenvolvem atividades artísticas de importância local, para evitar o falso conceito de vazio cultural na província. Dizia-me um jornalista há dias: “Tirando Lisboa e Porto, não há muito teatro em Portugal”. Respondi-lhe: “Cada vez há mais e felizmente”. Tanto profissional, como amador, produzem-se festivais de grande interesse. A sua falta de divulgação conduz ao desconhecimento e a conclusões erradas.

M.L: Em 2011, celebra 30 anos de carreira, desde que começou com a peça “Orpheu”, no Teatro Aberto em 1981. Que balanço faz destes 30 anos?
G.F: Não penso nisso, não sou muito saudosista. Mesmo quando me encontro com amigos da adolescência, e falamos do passado, é sempre com uma pontinha de cinismo (daquele cinismo filosófico), sem termos aquela ideia de “Ai, que bom que seria voltar atrás e repetir”. Gosto de ter a idade que tenho e de fazer as coisas que posso fazer, portanto não faço assim balanços históricos. É bom, gosto e quero continuar, ainda não me vou reformar, até porque talvez não vá haver reforma, e o melhor seja estar a trabalhar.

M.L: Gostava de ter feito uma carreira internacional?
G.F: Sim. Se eu fosse músico, teria sido possivelmente mais simples. A música é uma linguagem internacional que não precisa de tradutores. Ainda assim, tenho participado em algumas produções internacionais, a nível do cinema e da televisão. Imprescindível destacar a participação na longa-metragem "Street of No Return" ("Rua Sem Regresso" (1989), realizada pelo norte-americano Samuel Fuller, um senhor muito singular, que foi um dos “monstros” de Hollywood, no tempo de John Ford (da Meca do Cinema). Este foi o último filme que realizou, filmado em grande parte em Portugal, que me permitiu ter a possibilidade de privar com este realizador, e também com outros atores como o Keith Carradine, ou a Valentina Vargas, entre outros. Para quem estava a começar uma carreira, tratou-se de uma oportunidade única de contactar com uma realidade diferente e com profissionais que apenas víamos na tela do cinema. Senti-me todavia muito apoiado; Keith Carradine percebeu a minha insegurança e deu-me algumas dicas, do tipo “Pára, pensa, escolhe o mais simples”. Não tivemos mais conversas para além disso. O mesmo não se passou com o realizador, que simpatizou comigo e mostrou interesse pelo jovem ator português (éramos apenas três) que fazia o papel de polícia no seu filme. Fuller era um homem baixo, tinha 80 anos, e a sua bengala era um charuto, que ia acendendo uns nos outros à medida que terminavam. Como Alfred Hitchcock, também assinava os filmes, fazendo uma pequena participação no enredo. Naquelas longas esperas que são comuns no cinema, em que se organiza o cenário, se ilumina, a se coloca a câmara para filmar, inesperadamente Fuller dava-me o braço, convidava-me a deambular com ele e perguntou-me: “Porque queres ser ator?”. Às 3h00 da manhã, com um frio insuportável, a conversa levava por outros caminhos interessantes sobre a profissão e sobre a psicologia do ator: “Pensa sempre com profundidade; a arte é uma reflexão sobre a vida. Tudo na vida tem um lado dramático e um lado cómico. Quando interpretares uma personagem triste, pensa no seu lado cómico, e quando for uma personagem divertida, pensa no seu lado trágico”. Nunca mais esqueci esta abordagem dialética, que me propunha de forma clara e precisa.
Dele tive ainda a maior prova de respeito que um ator pode ter em plateau, quando estávamos a filmar uma cena de sequência, com travelling de câmara, um plano complicado que obrigava a um movimento de câmara entre um décor de partida e outro de chegada, correspondendo à passagem do Comissário, interpretado pelo próprio Fuller. A cena obrigava a um rigor de marcação entre nós e o cameraman. Samuel Fuller não participava diretamente, mas apenas em silhueta, um boneco plano em cartolina negra, que passava à frente da luz, projetando a sua sombra na parede por trás de mim. Tudo isto era executado por um técnico que, ao sinal, passava o boneco à frente de um projetor, enquanto eu devia reagir à passagem do suposto Comissário, fazendo continência. A minha reação dependia, portanto, da ação do técnico. O cameraman e diretor de fotografia era francês; fazia parte de uma equipa maioritariamente estrangeira. Ao executar o travelling, terá acontecido qualquer percalço, e não ficou satisfeito. Mal-disposto, mandou cortar e repetir. Pelo tom de voz percebi que ia arranjar um bode expiatório: eu era o mais novato naquilo tudo. Apontou para mim e, com um “aquele” de desprezo, acusou-me de não ter executado a marcação como havia feito no ensaio. Fuller resolveu diplomaticamente o conflito; voltando-se para o diretor de fotografia, disse: “Aquele é um ator. Não fez da mesma maneira, porque sentiu de maneira diferente”. Tudo se preparou para a repetição, enquanto Fuller se me dirigia: “O que é que aconteceu?”. Respondi-lhe que o movimento da silhueta fora diferente e que eu devia reagir organicamente à passagem do Comissário. “Está certo. Faz como deves fazer”, rematou o realizador. Foi esta uma grande prova de respeito entre profissionais, sobretudo, sendo o diretor um profissional conceituado e o ator um jovem debutante. Com atitudes deste tipo aprende-se de forma consciente e prazerosa.

M.L: Que trabalhos mais o marcaram, no teatro, no cinema e na televisão?
G.F: Em teatro, há vários espetáculos que me marcaram; pelos locais onde se realizaram, pelas pessoas que neles participaram, mas, sobretudo, pela dificuldade que continham. Desde logo o primeiro, em 1984, ainda como aluno da Escola de Teatro, quando me estreio no Teatro D. Maria II, na peça "Poe ou o Corvo", de Fiama Pais Brandão. Texto difícil, existencial, a exigir uma elaboração psicológica da personagem, o protagonista masculino, por um estreante, com responsabilidade acrescida na contracena com três atrizes da companhia daquele teatro: Maria Amélia Matta, Guida Maria e Luz Franco. No ano seguinte, foi a vez de representar a figura de Orestes, na tragédia "Pílades", de Pier Paolo Pasolini, em estreia absoluta do autor em Portugal, com encenação de Mário Feliciano. Mais uma vez, um texto complexo, em que a sorte me bateu à porta, e pude apoiar-me na contracena de um colega mais experiente, o António Capelo. As dificuldades sempre me motivaram o gozo da representação.
Mais recentemente, estive ligado a um projeto de ópera de câmara, em estreia absoluta: "O Fim", música de Carlos Marecos, e libreto de Paulo Lages, sobre a peça homónima de António Patrício. A obra foi construída propositadamente para uma soprano e um ator, interpretando a Rainha e o Desconhecido, respetivamente. Embora não me competisse cantar, na realidade eu devia seguir com rigor uma partitura, que me impunha ritmo e cadência próprias na elocução. Valeu-me o facto de saber ler música, mas nem por isso deixou de ser um trabalho difícil. Havia momentos em que a orquestra seguia o meu tempo interpretativo, estando as árias escritas desse modo, e outros que não, com árias faladas a exigir um grau de dificuldade idêntico ao do cantor. A tudo isto acrescia o facto de ser um longo monólogo de vinte minutos em cena, na segunda parte do espetáculo, após a personagem da Rainha o ter feito durante meia hora, na primeira parte. Foi um dos espetáculos mais problemáticos, pelo medo de falhar que me infundia. Às vezes desabafava com Margarida Marecos, a protagonista: “Se vocês se esquecerem da letra podem cantar em lá-lá-lá, mas eu não posso”. Se eu me esquecesse, a música continuaria certamente, sem eu saber o que fazer. Esta dificuldade ficou sendo um marco na minha carreira, demonstrando que uma pequena falha pode implicar a destruição de tudo; é, por isso, construir com solidez, para que possa surgir um grande momento de interpretação.
Ao nível da televisão, em termos de dificuldade, lembro o Paulo, o vilão da novela "Vidas de Sal" (RTP), de Tozé Martinho, em que contracenei com colegas de grande prestígio, como Mariana Rey Monteiro, recentemente falecida, que recordo com muita emoção, e também Maria Dulce, Henrique Viana, Manuela Maria ou Simone de Oliveira. Posso gabar-me de ter a sorte de ter trabalhado com a velha geração, que me ensinou muita coisa, sobretudo quando nos contam as histórias, testemunho das suas vidas. São momentos muito engraçados, em que nos divertimos imenso enquanto aprendemos. Foi um vilão dramático, muito problemático, que foi construído também pela forte contracena que me davam os mais velhos e os mais novos, muitos dos quais se estreavam então, e agora são reconhecidos pela sua qualidade, como a Patrícia Tavares, a Ana Brito e Cunha ou a Sofia Grillo.
Outra personagem que me deu muito gozo, com características de vilão de comédia, foi o Rogério Sapinho dos "Morangos com Açúcar" (TVI), um professor caricato, que me permitiu usar o registo de farsa da commedia dell'arte. Valeu-me, neste caso, a grande cumplicidade com os realizadores (Atíllio Riccó e Hugo de Sousa) e com os colegas com quem mais contracenava, em que fomos desenvolvendo um processo de trabalho apoiado no diálogo constante, na procura da melhor forma de apresentar a personagem em situação: uma construção em equipa, que se recorda como um trabalho que permite crescer profissionalmente em conjunto.

M.L: Quais são os seus próximos projetos, quando a digressão de “Uma História de Dois” terminar?
G.F: Continuar a investigação e terminar o meu doutoramento, que é sempre um projeto complicado para qualquer pessoa que o esteja a fazer. Para já, não tenho nenhuma peça, o que for será. Não sei ainda.

M.L: Qual foi a figura da representação que mais o marcou, durante o seu percurso como ator?
G.F: Várias. A todos fui buscar um bocadinho. Com Eunice Muñoz compreendi o valor do silêncio em palco; com Ruy de Carvalho, o poder da palavra em palco; com Barroso Lopes, com Irene Isidro, ambos já falecidos, que muitos conhecem do cinema popular, o prazer de estar em cena, mesmo em papéis aparentemente insignificantes; com Rui Mendes, meu professor de teatro na escola, o sentido de expressar a ironia em cena; e até com a Teresa Guilherme, agora mais recente, a forma como se luta por um sonho na dura realidade que nos rodeia. Aos mais velhos vou buscar algo muito importante, a aparência de simplicidade. As coisas boas parecem simples, porque foram inicialmente bem pensadas, para poderem chegar límpidas ao espetador, no momento do espetáculo, para que ele seja um produto artístico, um produto que transforme não só quem o fez, como quem o viu. Foi isso que eu aprendi não só com os mais velhos, mas também com os mais novos, porque todos partilhamos as mesmas preocupações e os mesmos medos de errar. No fundo, somos desassossegados pela vontade de fazer bem feito, de forma interessante, de ser feliz da vida, para fazer os outros felizes. Acho que essa é a grande aprendizagem como pessoa/ator.

M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha feito ainda?
G.F: Ainda não fiz tanta coisa. Não sou capaz de responder. De repente, não me ocorre nada que eu gostasse de fazer. Mas estarei alerta para evitar que me escape cruzar-me com uma possibilidade de fazer qualquer coisa que eu ainda não tinha feito e possa fazer.

M.L: Se não fosse o Guilherme Filipe, qual era o ator que gostava de ter sido?
G.F: Como disse, acho que o Guilherme Filipe é de alguma forma um bocadinho de todos os atores que gostaria de ser. A todos vai buscar um elemento fundamental, um ponto de referência qualitativa em termos de interpretação. Ao nível do cinema, fui fã do Robert DeNiro, numa primeira fase, a que se seguiu o Al Pacino, e o Dustin Hoffman. Eles constituem um padrão de fruição artística, ao mesmo tempo que representam um estudo de caso sobre técnicas de representação, na sua área. O mesmo acontece com os atores de teatro, sejam estrangeiros ou nacionais. Quando observo uma atriz como Eunice Muñoz a representar, disfruto no seu processo de trabalho a sabedoria de uma vida que ela consegue sintetizar no momento da representação em cena. Como eles (sem arrogância), gostaria de ser um Guilherme Filipe portador de uma centelha de inteligência, de cultura que me transforme continuamente, para conseguir ser um melhor ator Guilherme Filipe.ML

Sem comentários:

Enviar um comentário