quarta-feira, 10 de abril de 2019

Mário Lisboa entrevista... Susana Sá

Natural do Porto, o interesse pela representação surgiu muito cedo na sua vida, iniciando um percurso artístico que já conta com duas décadas de existência e que pauta pela versatilidade e pela dedicação à profissão. O palco, segundo a própria, é onde mais consegue afastar-se e aproximar-se de si própria. Recentemente participou nas longas-metragens "Uma Vida Sublime", "Imagens Proibidas" e "Gabriel", e atualmente participa nas peças "Fantasmas?" e "Casal Aberto", que estão em digressão. Esta entrevista foi feita, por via email, no passado dia 4 de Abril.

M.L: Quando surgiu o interesse pela representação?
S.S: Desde cedo. Sempre gostei de contar histórias. E de ouvir histórias. Tive a sorte de crescer na presença de livros e filmes. Quando era miúda via tanto cinema em casa, filmes difíceis e inquietantes, Bergman, Dreyer, Antonioni, Visconti, Godard, por exemplo. Ser atriz foi uma decisão que surgiu como um prolongamento de algo que me era vital, quase como uma bolsa de oxigénio. A curiosidade e até necessidade (sou filha única) de me ocupar pelas histórias que falavam do mundo interior de outros que não eu, e consequentemente do mundo lá fora, da condição humana. Fui estudar teatro após me licenciar na área de estudos políticos. A vontade de intervir, de comunicar, de retirar as personagens dos livros e de as levar ao público, apesar de a literatura ser a minha grande paixão ainda hoje, foi mais forte. Acho que aprendi a falar com o teatro. Aprendi a ouvir, a ver. Ainda hoje o palco é o lugar mais paradoxal que conheço, é ali que mais consigo afastar-me e aproximar-me de mim própria.

M.L: Quais são as suas referências, enquanto atriz?
S.S: Admiro muito o trabalho da Isabelle Huppert, Cate Blanchett, Meryl Streep e, claro, da Liv Ullmann.

M.L: Houve algum trabalho em particular como atriz que lhe permitiu entrar na profundidade de uma personagem de uma maneira muito surpreendente?
S.S: Quando trabalhas uma “personagem” estás a trabalhar a tua subjetividade sobre uma narrativa e simultaneamente a abrir o teu campo de visão. São sempre os teus olhos sobre as coisas. Com isto quero dizer que são sempre as emoções, as sensações e os teus pensamentos que estás a requisitar e a agitar. Tive processos de trabalho mais fortes que outros, que me exigiram “uma observação” mais de perto. Acredito no efeito de contaminação, de osmose. É uma (des)arrumação contínua, interior e, por vezes, só depois é que tens noção dos seus reflexos, dos ecos que ficaram em ti dessas “personagens”.

M.L: Tem experiência no Ensino como professora e também na escrita. No que toca ao Ensino, teve alguma vez um momento “Clube dos Poetas Mortos” com os seus alunos?
S.S: Tive a sorte de ter dois professores de filosofia que me revelaram o prazer de pensar e um professor de português que nos lia livros como quem ama. Guardei uma imagem na minha memória, de o ver, encostado à janela da sala de aula, a ler-nos “Os Maias”. Era como se ele estivesse num outro lugar que não ali, um lugar maior e que eu desconhecia e no qual ele parecia muito feliz. E foi assim que li o romance do Eça, à procura daquele lugar. Mal sabia eu, nessa altura, que dez anos depois iria fazer a Maria Eduarda no Teatro Experimental do Porto, durante cinco anos. Felizmente reencontrei os meus professores e pude agradecer-lhes. Com os meus alunos, já tive momentos maravilhosos: sempre que algum deles me diz que ficou a pensar no que discutimos em aula e a conversa se prolonga pelo intervalo, ou quando uma aluna me diz que comprou um livro de que lhes falei, ou de cada vez que os vejo a seguir com muita atenção a imagem, o diálogo de um filme que lhes mostro, que os sinto ali, no presente, para mim vale a pena. Quero que eles se encantem com a vida, se comprometam consigo próprios. Não sei se pode afirmar que tenho experiência na escrita, já tive uma curta-metragem que escrevi num festival de cinema, um anúncio publicitário a passar nas rádios e um segundo prémio para um conto infantil que escrevi, mas são episódios esporádicos. Escrevo com frequência para as aventuras teatrais dos meus alunos, mas não tenho nada publicado.

M.L: Estreou-se na televisão como “Nicha” na telenovela “A Lenda da Garça” (RTP) em 1999. Vinte anos depois, como olha para a sua primeira experiência televisiva?
S.S: Tudo era novo, tudo era aprendizagem. Olho com muito carinho, como acho que devemos olhar para o nosso passado.


Susana Sá como "Nicha" ao lado de Maria João Guimarães
M.L: Recentemente participou na longa-metragem “Gabriel”, que marca a estreia do produtor Nuno Bernardo na realização de longas-metragens.
S.S: Sim, e gostei muito do resultado final, sou suspeita mas é verdade. É um filme com um ritmo diferente. É cru, é real. E o Nuno Bernardo dedicou muito tempo ao trabalho de interpretação do ator. E isso faz muita diferença. Para além de trocarmos impressões, tivemos o apoio da Karla Muga antes de iniciarmos as rodagens, tivemos ensaios, houve espaço para experimentar possibilidades.


Susana Sá e Sérgio Praia
M.L: Atualmente co-protagoniza a peça “Casal Aberto”, de Dario Fo e Franca Rame, que está em digressão. A seu ver, a escrita de Dario Fo está mais do que nunca atual?
S.S: Dario Fo foi Prémio Nobel, creio que este facto fala por si mesmo. As obras que nos deixou são altamente conscientes relativamente ao poder, com referências constantes às consequências práticas do abuso de poder, da falta de igualdade, liberdade e humanismo. E usou o riso como arma e veículo. A sua escrita continuará atual porque a injustiça e a diferença de tratamento, seja em relação ao género, em relação às classes sociais ou à gestão e distribuição de riqueza ainda continuam, em diferentes escalas e configurações, mas continuam. O homem é o lobo do homem e não basta alterar a lei, é imprescindível que os comportamentos acompanhem a sua evolução, é necessária a sua inscrição ética. Dario Fo sabia-o como podemos ler nos seus textos de teatro ou nas suas entrevistas. A peça foi escrita em 1982 e se havia alguma ponte temporal a construir, a encenação de Rui Dionísio e o cenário e figurinos da Ana Paula Rocha, fizeram-na. Gosto mesmo muito de fazer este espetáculo com o Eurico Lopes, há uma relação muito direta com o público, muito “olhos nos olhos”, muita cumplicidade e tem sido tão gratificante, tão bom.


Susana Sá e Eurico Lopes
M.L: Participou também, em 2019, nos filmes “Uma Vida Sublime” e “Imagens Proibidas”. Quais são os seus próximos projetos?
S.S: Sim, “Uma Vida Sublime” de Luís Diogo que ganhou uma quantidade de prémios lá fora, e “Imagens Proibidas” de Hugo Diogo, um filme sensível baseado num livro sensível de Pedro Paixão, que tive a oportunidade de conhecer e entrevistar. Quanto ao teatro, continuamos (TEatroensaio e Cendrev) com a digressão da comédia “Fantasmas?”, de Eduardo de Filippo. E com a digressão da comédia “Casal Aberto”, com a companhia Cegada - estaremos dias 27 e 28 de Abril no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo. Em meados deste mês começo os ensaios de “Bonecas”, com encenação de Ana Luena que vai estrear em Julho, no Porto, no TECA, depois estará no Teatro Garcia de Resende em Évora e, no próximo ano, no Teatro São Luiz, em Lisboa. Continuo com as minhas locuções e dobragens na RTP, a escrevinhar peças de teatro infanto-juvenis e a fazer investigação em artes performativas e audiovisuais na Faculdade de Letras de Lisboa (escrevemos o nosso primeiro livro o ano passado!).


  Susana Sá como "Graça" em "Imagens Proibidas"
Susana Sá e Eric da Silva, o protagonista de "Uma Vida Sublime".
M.L: Que conselhos daria a alguém que queira ingressar numa carreira na representação?
S.S: Respeito pela profissão, humildade, resiliência, paciência. E muita literatura. Ver muito cinema e teatro. Fazer investigação e estar disponível para procurar novas formas de abordar as (mesmas) questões. É indispensável sabermos de onde viemos, é importante percebermos quem somos, a nossa “identidade”, assim como é mais que fundamental estar atento aos outros, à questão da alteridade. O ato criativo, para mim, é um processo de dentro para fora. O ator é um aprendiz até ao fim, um profissional em constante construção, nunca está completo.

M.L: Que balanço faz do percurso que tem desenvolvido até agora como atriz?
S.S: Positivo, mas podia ser melhor. Sou mais feliz quando estou a trabalhar, é uma sina. Consegui, até hoje, manter a minha independência a trabalhar na área que escolhi mas ser ator, artista em Portugal é um duplo ato de resistência. A instabilidade instalou-se, não há horizonte nem rede. O panorama atual do teatro é da possibilidade de produção artística para cada vez menos artistas. Não se estão a criar pontes suficientes. Ganha o mais forte mas o mais forte não é necessariamente aquele que tem mais mérito. Penso que vivemos um quase-retrocesso.



Susana Sá como "Antónia Félix" na série "Massa Fresca" (TVI)
Susana Sá como "Barbara", ao lado de Duarte Gomes, na telenovela "Jogo Duplo" (TVI)
M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha feito ainda nesta altura da sua vida?
S.S: Tantas coisas. Vários autores e muitas viagens. Bem, já plantei uma árvore, agora falta o resto.ML

3 comentários:

  1. Parabéns pela entrevista a uma excelente atriz com um excelente currículum!

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  2. Excelente entrevista à querida Susana Sá. Poderosa, mulher inteira e versátil.

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  3. Querida Susana, com lagrimas nos olhos, li e reli esta entrevista.
    Parabens por ter conseguido tudo aquilo por que tanto lutou.
    Recordo com muita saudade suas aulas e todo o empenho em tirar de nós o melhor e o amor com que o fazia.
    Voou, e ainda bem. Fico orgulhosa de si.
    Beijinhos da sua Petra.

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