quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Mário Lisboa entrevista... Edgar Pêra

O cinema surgiu muito cedo na sua vida, iniciando o seu percurso cinematográfico nos anos 80, e desde então tornou-se num dos realizadores portugueses mais versáteis e mais singulares das últimas três décadas, com uma visão muito própria sobre o próprio Cinema e o Mundo em geral. Trabalhador incansável, gostava de ter férias prolongadas, e recentemente realizou a longa-metragem "Caminhos Magnétykos", que é baseada na obra de Branquinho da Fonseca, com um elenco que inclui, por exemplo, o francês Dominique Pinon e o brasileiro Ney Matogrosso, e foi premiada recentemente nos Caminhos do Cinema Português. Esta entrevista foi feita, por via email, no passado dia 5 de Outubro.

M.L: Quando surgiu o interesse pelo Cinema?
E.P: “Supercalifragilisticoespialidoso”. Ainda me lembro desta eskanifobétyka palavra, que aprendi aos seis anos enquanto assistia a “Mary Poppins” (1964), o primeiro filme que vi, no Cinema Imperial,  “o melhor cinema de segunda ordem de Lisboa” segundo a propaganda da altura. Acredito que o primeiro filme que vimos deixa um imprinting na memória do espectador, e é bitola para todos os filmes vistos posteriormente. Olhando para trás acho que aquela mistura de animação e live action influenciou-me de forma subterrânea, enquanto espectador e enquanto criador. Para mim cinema é território do imaginário e “Mary Poppins” cultivou esse gosto. Quando tinha 10 anos pediram-me para escrever uma redacção sobre as minhas férias. O meu texto resumia-se à descrição, em 4 ou 5 páginas, de um filme que tinha visto, “Waterloo” (1970). A memória mais intensa das minhas férias tinha sido um filme. Acho que também é revelador.

M.L: Quais são as suas referências nessa área?
E.P: Despertei para o cinema como cinéfilo aos 13 anos, logo depois do 25 de Abril de 1974. Assistia diariamente, com o meu irmão, durante as férias, às sessões duplas no cinema (semi) ao ar livre de Monte Gordo. Foi lá que vi “Roma de Fellini” (1972) e “Belle de Jour” (1967), de (Luis) Buñuel. Passei a ter uma ideia radicalmente diferente do cinema, do que (também) podia ser cinema. Depois, seguiram-se os ciclos do Palácio Foz e da Gulbenkian. Ia 3 vezes (às vezes 4) por dia ao cinema e via ciclos integrais de cinematografias desconhecidas (lembro-me do ciclo de cinema belga, ou seria suíço? Provavelmente os dois). Vi (Sergei) Eisenstein, (Dziga) Vertov, (Lev) Kuleshov, (Jacques) Tourneur, (François) Truffaut, (Jean-Luc) Godard, (Robert) Bresson, (Alfred) Hitchcock, (Howard) Hawks, Fritz Lang, (Carl) Dreyer, (Alain) Resnais (o meu cineasta francês favorito) e tantos mais. Lembro-me de ver (e ouvir) o “Eraserhead” (1977) na Cinemateca e no fim éramos apenas meia-dúzia. O (David) Lynch ainda não estava na moda. A banda sonora deste filme teve um grande impacto sobre o meu modo de criar ambientes sonoros totalmente recriados na montagem.

M.L: Como realizador, é de certa maneira um investigador no que toca a explorar diferentes formas cinematográficas. A seu ver, qualquer realizador/a devia tomar esse tipo de posição em relação a fazer cinema, ou para si é uma necessidade?
E.P: Qualquer realizador, que veja o cinema enquanto arte, terá de procurar a sua cine-identidade e procurar novas formas de abordar os mesmos problemas, combinando processos e metodologias utilizadas no passado. Para mim isso é um cineasta, um artista das imagens (e sons) em movimento.

M.L: Em 2014, realizou a comédia “Virados do Avesso” que foi o seu primeiro filme mais comercial, tendo ultrapassado os 100.000 espectadores, e foi produzido pelo falecido Nicolau Breyner que também fez um cameo no filme. Que recordações guarda de trabalhar com ele?
E.P: Muito afável. Gostava de improvisar, tal como eu. “Virados do Avesso” foi uma oportunidade para demonstrar que conseguia fazer filmes populares, e não apenas filmes vanguardistas. Já o tinha feito com “Oito Oito” para a SIC Filmes em 2001; gosto deste tipo de desafios de dialogar com espectadores não necessariamente cinéfilos.

"Virados do Avesso": Nuno Melo, Isabel Medina, Marina Albuquerque, Philippe Leroux, Jorge Corrula, Edgar Pêra, Diogo Morgado, Melânia Gomes, Nicolau Breyner, Diana Monteiro
M.L: Tem sido homenageado ao longo dos anos, e no âmbito de uma homenagem que o Indie Lisboa lhe fez em 2006, o crítico e programador alemão Olaf Möller escreveu o seguinte: Sobre Edgar Pêra pode certamente dizer-se “muito diferente daquele que vemos como “correcto”, “válido” dentro da cultura do cinema, “realista” no sentido cinematográfico e sócio-político. Mais precisamente: Edgar Pêra é diferente de tudo o que sabemos sobre Portugal.”. Sendo uma pessoa terra a terra, como é que se sente, quando é tanto homenageado como elogiado?
E.P: Sinto-me bem. É bom ver o trabalho reconhecido, sem ter de fazer concessões. No caso do Olaf Möller é um reconhecimento centuplicado, dado que ele é um dos maiores conhecedores do cinema global de todos os tempos, uma espécie de Indiana Jones das cinematografias perdidas. Foi graças ao interesse do Olaf pelos meus filmes, que o Indie fez a minha retrospectiva em 2006. Também fiquei muito grato ao António Preto, quando dedicou tanto tempo da sua vida à retrospectiva em Serralves. São duas pessoas que não conhecia, que conheceram primeiros os meus filmes e só depois a minha pessoa, pelo que sei que gostam do meu trabalho sem fazerem qualquer tipo de favor. A amizade só surgiu depois.


M.L: Costuma trabalhar com certos actores e o Nuno Melo era um deles. Como olha para o percurso que ele desenvolveu até ao seu falecimento em 2015?
E.P: O Nuno foi o actor com quem mais trabalhei, filmávamos a toda a hora, mesmo que fosse só para os meus arquivos. Era a nossa kino-ginástica e era uma forma de cimentarmos a nossa amizade e cumplicidade, preparando-nos para filmes futuros. Geralmente tínhamos tendência natural para o disparate e a comédia. “O Barão” (2011) foi um enorme esforço de contenção para ambos. Valeu a pena. Muito poderia dizer sobre o trabalho do Nuno, mas é sobretudo a falta do amigo o que mais sinto.


M.L: Adaptou Branquinho da Fonseca para o cinema mais do que uma vez. O que o fascina neste autor em particular?
E.P: O seu desalinhamento, a fusão de realismo com surrealismo através de imagens do pensamento.

M.L: Escreveu a ideia original para o guião da média-metragem “Um Passo, Outro Passo e Depois…” (1991), de Manuel Mozos e protagonizada pelo falecido Canto e Castro. Como é que surgiu esta história na altura?
E.P: Essa história surgiu de um projecto geracional de 4 filmes, concebido por mim e em cumplicidade com cineastas “emergentes”, na tentativa de trabalharmos em conjunto e provarmos que o todos é mais do que a soma das partes. Um escrevia a história, outro o argumento e outro realizava. Fui posto fora desse cine-comboio por um responsável da RTP e o Manuel Mozos foi o único dessa geração que se atreveu a pegar numa história minha para esse projecto. O Manuel é um poeta.

Canto e Castro em "Um Passo, Outro Passo e Depois..."

M.L: Iniciou em 2010 uma intensa pesquisa no formato 3D. Que conclusão é que tirou ao explorar este formato específico nestes últimos anos?
E.P: Que é um formato muito interessante de explorar mas muito difícil de exibir. No entanto continuo a fazer filmes em 3D, apesar dessa contrariedade.


M.L: Tendo também experiência na docência, qual conselho que daria a alguém que queira ingressar numa carreira cinematográfica?
E.P: Trabalhar todos os dias. Filmar sempre que possível, sob diferentes identidades. Descobrir cine-personas dentro de si. Não desistir e apresentar projectos muito bem preparados. Tenho um lema: “Um Não é o primeiro degrau de um Sim”.

M.L: Que balanço faz do percurso cinematográfico que tem desenvolvido até agora?
E.P: Positivo, mas podia ser melhor. Não consigo garantir o meu futuro a médio prazo, andamos sempre com a corda na garganta, a correr atrás do prejuízo... Mas não me posso queixar, mantive a minha independência, o que infelizmente não é frequente no nosso meio. Tenho amigos, colegas da escola de cinema, a viver em quartos e hosteis, outros em negócios que não têm nada a ver com a sua profissão. É degradante. Primeiro graças aos meus pais, e depois graças  a uma longa lista de amigos e cúmplices pude continuar o meu trabalho, sem parar, mesmo que sem dinheiro.

M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha feito ainda nesta altura da sua vida?
E.P: Férias de um mês ou mais. Já não o faço desde a post-adolescência. Os últimos anos então têm sido infernais em termos de trabalho. E como se sabe o Inferno está cheio de desejos que queríamos ver cumpridos. Nunca trabalhei tanto em tantos projectos ao mesmo tempo. Também há alturas que tenho a tentação de realizar um filme neo-realista poético, só para provar que consigo fazer, mas depois ganho juízo.ML

Esta entrevista não está sob o novo Acordo Ortográfico

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