M.L: Quando surgiu o interesse pela representação?
S.S: Desde cedo. Sempre gostei de contar histórias. E de
ouvir histórias. Tive a sorte de crescer na presença de livros e filmes. Quando
era miúda via tanto cinema em casa, filmes difíceis e inquietantes, Bergman, Dreyer, Antonioni, Visconti, Godard, por exemplo. Ser atriz foi uma decisão que surgiu como um prolongamento
de algo que me era vital, quase como uma bolsa de oxigénio. A curiosidade e até
necessidade (sou filha única) de me ocupar pelas histórias que falavam do mundo
interior de outros que não eu, e consequentemente do mundo lá fora, da condição
humana. Fui estudar teatro após me licenciar na área de estudos políticos. A
vontade de intervir, de comunicar, de retirar as personagens dos livros e de as
levar ao público, apesar de a literatura ser a minha grande paixão ainda hoje, foi
mais forte. Acho que aprendi a falar com o teatro. Aprendi a ouvir, a ver. Ainda
hoje o palco é o lugar mais paradoxal que conheço, é ali que mais consigo
afastar-me e aproximar-me de mim própria.
M.L: Quais são as suas referências, enquanto atriz?
S.S: Admiro muito o trabalho da Isabelle Huppert, Cate Blanchett, Meryl
Streep e, claro, da Liv Ullmann.
M.L: Houve algum trabalho em particular como atriz que
lhe permitiu entrar na profundidade de uma personagem de uma maneira muito
surpreendente?
S.S: Quando trabalhas uma “personagem” estás a trabalhar a
tua subjetividade sobre uma narrativa e simultaneamente a abrir o teu campo de
visão. São sempre os teus olhos sobre as coisas. Com isto quero dizer que são
sempre as emoções, as sensações e os teus pensamentos que estás a requisitar e
a agitar. Tive processos de trabalho mais fortes que outros, que me exigiram “uma
observação” mais de perto. Acredito no efeito de contaminação, de osmose. É uma
(des)arrumação contínua, interior e, por vezes, só depois é que tens noção dos
seus reflexos, dos ecos que ficaram em ti dessas “personagens”.
M.L: Tem experiência no Ensino como professora e
também na escrita. No que toca ao Ensino, teve alguma vez um momento “Clube dos
Poetas Mortos” com os seus alunos?
S.S: Tive a sorte de ter
dois professores de filosofia que me revelaram o prazer de pensar e um professor
de português que nos lia livros como quem ama. Guardei uma imagem na minha
memória, de o ver, encostado à janela da sala de aula, a ler-nos “Os Maias”. Era
como se ele estivesse num outro lugar que não ali, um lugar maior e que eu
desconhecia e no qual ele parecia muito feliz. E foi assim que li o romance do
Eça, à procura daquele lugar. Mal sabia eu, nessa altura, que dez
anos depois iria fazer a Maria Eduarda no Teatro Experimental do Porto, durante
cinco anos. Felizmente reencontrei os meus professores e pude agradecer-lhes. Com
os meus alunos, já tive momentos maravilhosos: sempre que algum deles me diz
que ficou a pensar no que discutimos em aula e a conversa se prolonga pelo
intervalo, ou quando uma aluna me diz que comprou um livro de que lhes falei,
ou de cada vez que os vejo a seguir com muita atenção a imagem, o diálogo de um
filme que lhes mostro, que os sinto ali, no presente, para mim vale a pena. Quero
que eles se encantem com a vida, se comprometam consigo próprios. Não sei se pode
afirmar que tenho experiência na escrita, já tive uma curta-metragem que
escrevi num festival de cinema, um anúncio publicitário a passar nas rádios e
um segundo prémio para um conto infantil que escrevi, mas são episódios
esporádicos. Escrevo com frequência para as aventuras teatrais dos meus alunos,
mas não tenho nada publicado.
M.L: Estreou-se na televisão como “Nicha” na telenovela
“A Lenda da Garça” (RTP) em 1999. Vinte anos depois, como olha para a sua
primeira experiência televisiva?
S.S: Tudo era novo, tudo
era aprendizagem. Olho com muito carinho, como acho que devemos olhar para o
nosso passado.
Susana Sá como "Nicha" ao lado de Maria João Guimarães |
M.L: Recentemente participou na longa-metragem
“Gabriel”, que marca a estreia do produtor Nuno Bernardo na realização de longas-metragens.
S.S: Sim, e gostei muito
do resultado final, sou suspeita mas é verdade. É um filme com um ritmo
diferente. É cru, é real. E o Nuno Bernardo dedicou muito tempo ao trabalho de
interpretação do ator. E isso faz muita diferença. Para além de trocarmos
impressões, tivemos o apoio da Karla Muga antes de iniciarmos as rodagens,
tivemos ensaios, houve espaço para experimentar possibilidades.
Susana Sá e Sérgio Praia |
M.L: Atualmente co-protagoniza a peça “Casal Aberto”,
de Dario Fo e Franca Rame, que está em digressão. A seu ver, a escrita de Dario
Fo está mais do que nunca atual?
S.S: Dario Fo foi Prémio Nobel,
creio que este facto fala por si mesmo. As obras que nos deixou são altamente
conscientes relativamente ao poder, com referências constantes às consequências
práticas do abuso de poder, da falta de igualdade, liberdade e humanismo. E
usou o riso como arma e veículo. A sua escrita continuará atual porque a
injustiça e a diferença de tratamento, seja em relação ao género, em relação às
classes sociais ou à gestão e distribuição de riqueza ainda continuam, em
diferentes escalas e configurações, mas continuam. O homem é o lobo do homem e
não basta alterar a lei, é imprescindível que os comportamentos acompanhem a
sua evolução, é necessária a sua inscrição ética. Dario Fo sabia-o como podemos
ler nos seus textos de teatro ou nas suas entrevistas. A peça foi escrita em
1982 e se havia alguma ponte temporal a construir, a encenação de Rui Dionísio e
o cenário e figurinos da Ana Paula Rocha, fizeram-na. Gosto mesmo muito de
fazer este espetáculo com o Eurico Lopes, há uma relação muito direta com o
público, muito “olhos nos olhos”, muita cumplicidade e tem sido tão
gratificante, tão bom.
Susana Sá e Eurico Lopes |
M.L: Participou também, em 2019, nos filmes “Uma Vida
Sublime” e “Imagens Proibidas”. Quais são os seus próximos projetos?
S.S: Sim, “Uma Vida
Sublime” de Luís Diogo que ganhou uma quantidade de prémios lá fora, e “Imagens
Proibidas” de Hugo Diogo, um filme sensível baseado num livro sensível de Pedro
Paixão, que tive a oportunidade de conhecer e entrevistar. Quanto ao teatro, continuamos
(TEatroensaio e Cendrev) com a digressão da comédia “Fantasmas?”, de Eduardo de
Filippo. E com a digressão da comédia “Casal Aberto”, com a companhia Cegada -
estaremos dias 27 e 28 de Abril no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo.
Em meados deste mês começo os ensaios de “Bonecas”, com encenação de Ana Luena
que vai estrear em Julho, no Porto, no TECA, depois estará no Teatro Garcia de
Resende em Évora e, no próximo ano, no Teatro São Luiz, em Lisboa. Continuo com
as minhas locuções e dobragens na RTP, a escrevinhar peças de teatro
infanto-juvenis e a fazer investigação em artes performativas e audiovisuais na
Faculdade de Letras de Lisboa (escrevemos o nosso primeiro livro o ano passado!).
Susana Sá como "Graça" em "Imagens Proibidas" |
Susana Sá e Eric da Silva, o protagonista de "Uma Vida Sublime". |
M.L: Que conselhos daria a alguém que queira ingressar
numa carreira na representação?
S.S: Respeito pela profissão,
humildade, resiliência, paciência. E muita literatura. Ver muito cinema e
teatro. Fazer investigação e estar disponível para procurar novas formas de abordar as (mesmas) questões.
É indispensável sabermos de onde viemos, é importante percebermos quem somos, a
nossa “identidade”, assim como é mais que fundamental estar atento aos outros,
à questão da alteridade. O ato criativo, para mim, é um processo de dentro para
fora. O ator é um aprendiz até ao fim, um profissional em constante construção,
nunca está completo.
M.L: Que balanço faz do percurso que tem desenvolvido
até agora como atriz?
S.S: Positivo, mas podia ser melhor. Sou mais feliz quando
estou a trabalhar, é uma sina. Consegui, até hoje, manter a minha independência
a trabalhar na área que escolhi mas ser ator, artista em Portugal é um duplo ato
de resistência. A instabilidade instalou-se, não há horizonte nem rede. O
panorama atual do teatro é da possibilidade de produção artística para cada vez
menos artistas. Não se estão a criar pontes suficientes. Ganha o mais forte mas
o mais forte não é necessariamente aquele que tem mais mérito. Penso que
vivemos um quase-retrocesso.
M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha
feito ainda nesta altura da sua vida?
S.S: Tantas coisas. Vários autores e muitas viagens.
Bem, já plantei uma árvore, agora falta o resto.ML
Susana Sá como "Antónia Félix" na série "Massa Fresca" (TVI) |
Susana Sá como "Barbara", ao lado de Duarte Gomes, na telenovela "Jogo Duplo" (TVI) |
Parabéns pela entrevista a uma excelente atriz com um excelente currículum!
ResponderEliminarExcelente entrevista à querida Susana Sá. Poderosa, mulher inteira e versátil.
ResponderEliminarQuerida Susana, com lagrimas nos olhos, li e reli esta entrevista.
ResponderEliminarParabens por ter conseguido tudo aquilo por que tanto lutou.
Recordo com muita saudade suas aulas e todo o empenho em tirar de nós o melhor e o amor com que o fazia.
Voou, e ainda bem. Fico orgulhosa de si.
Beijinhos da sua Petra.