M.L: Como é que está a correr a peça “Uma História de Dois”?
G.F: Está a correr bem. Vamos terminar no dia 31 de Outubro, aqui no Porto.
Depois, teremos ainda vários espetáculos, em Novembro, na zona centro, e
terminamos na zona sul.
M.L: Quais são os próximos locais que a peça vai passar?
G.F: Figueira da Foz, Santa Comba Dão, Condeixa, Tomar, Portalegre, Nisa e Beja. Acho que é mais ou menos por esta ordem.
M.L: “Uma História de Dois” é um original do espanhol Eduardo Gálan. O que o levou a aceitar o convite para participar na peça?
G.F: Em primeiro lugar, trata-se de uma produção da DRAMAX, a empresa do
Celso Cleto, sediada em Oeiras, com quem tenho vindo a trabalhar. Este é o
terceiro espetáculo que eu faço. Por outro lado, esta peça tem interesse pela
própria história, uma personagem com muito interesse, daquelas que motivam o
trabalho de qualquer ator. Além disso, trata-se de um original espanhol, que ainda
não foi estreado em Espanha. A sua estreia absoluta acontece em Portugal, o que
também é motivo de interesse acrescido.
M.L: Já trabalhou anteriormente com o encenador da peça Celso Cleto. Como é trabalhar com ele?
G.F: O Celso Cleto é um encenador com experiência. Foi inclusivamente
subdiretor do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, quando o diretor era Carlos Avillez. E, como encenador, tem também trabalhado em Espanha, dirigindo
outras peças de Eduardo Gálan, que acabou por trazer para Portugal, como "A Curva da Felicidade". É um profissional
com créditos, que se especializou num tipo de teatro comercial cujo interesse
reside na problemática dos enredos que apresenta, retratando situações com as
quais o público em geral sente afinidade. Foi o caso da peça "Miss Daisy", galardoada com um Prémio
Pulitzer, com que iniciei a minha colaboração artística com o encenador Celso
Cleto, mas também de "Uma História de Dois".
M.L: Nesta peça, interpreta Carlos, um professor
viúvo que anseia pela reforma antecipada e desenvolve uma amizade com Luísa,
uma mãe divorciada de um aluno dele que trabalha num supermercado, e é interpretada
por Teresa Guilherme. Como classifica a sua personagem?
G.F: O Carlos
é o protótipo de muitos homens de meia-idade dos tempos que correm, não só em
Portugal, como em Espanha, como na Europa, e talvez no resto do mundo
ocidental, onde obviamente os padrões são os mesmos. É uma figura contraditória,
com flutuações de humor do princípio ao fim, cheia de incoerências
existenciais, que lhe dão um colorido expressivo à personalidade. É tal a
escala de emoções e a paleta de sentimentos que se torna num bombom para um
ator e o espectador saborearem.
M.L: Já foi professor tal como a sua personagem. Como é que se sente, quando interpreta um professor?
G.F: Ser professor e interpretar um professor não é a mesma coisa. Representar
o papel de professor na vida real é criar a nossa própria ficção no dia-a-dia. Interpretar
um professor é mais do que isso, é recriar um outro professor. É no fundo
sintetizar numa personagem uma quantidade de professores que tomamos como
exemplo por razões diversas, e criar um professor específico, ficcionado de
forma realista, que permite que os espectadores (entre os quais alguns
professores autênticos) reconheçam, ou se reconheçam, no sujeito retratado. A
personagem de Carlos, que interpreto agora, tem obviamente alguma coisa daquilo
que eu sou, ou do que eu fui enquanto professor. Comecei a minha carreira
docente em 1972, e esse percurso torna-se em uma mais-valia, uma autenticidade
que dá credibilidade à personagem que interpreto. Mas a pessoa do professor
Carlos da "Uma História de Dois" tem uma
realidade que não é a minha e que eu tenho de criar em cena. Chama-se a isto criar
um “papel”, ou seja formar uma personalidade cénica, que expressa o pensamento
do autor, agindo em mim, através do meu corpo e da minha alma.
M.L: Como é trabalhar com a Teresa Guilherme?
G.F: É muito bom. Juntar dois Guilhermes em palco é desde logo uma
coincidência engraçada. Para além dessa curiosidade, a Teresa é uma Profissional,
é uma Perfecionista: dois Pontos que partilhamos com muito prazer. Leva qualquer
trabalho muito a sério e ainda mais o de atriz…
M.L: É recente.
G.F: É a terceira peça que a Teresa leva à cena. Desenvolveu a sua carreira como
apresentadora e como produtora de uma forma tão coerente e bem estruturada que
se impôs como excelente profissional que é. Curiosamente, a Teresa transporta e
desenvolve as suas capacidades de atriz a partir da sua enorme capacidade de
comunicadora. Mas, por outro lado, também constatamos que a Teresa complementa
essa sua facilidade pessoal com o estudo de obras teóricas, como as de
Stanislavski, que qualquer ator sabe ser importante para desenvolver um método
coerente de trabalho. A Teresa não é uma amadora que, de repente, disse:
“Olha, vou ser atriz”. Pelo contrário. A sua postura foi a de “Tudo bem, quero
passar pela experiência, mas vou formar-me nesse aspeto.”, e é esse o modo de
estar que sempre demonstrou.
M.L: Recentemente, fez uma digressão com a peça
“Hedda Gabler” de Henrik Ibsen, que também foi encenada por Celso Cleto, que o
levou a Madrid. Foi a primeira vez que foi a Madrid, a propósito de um
espetáculo?
G.F: Para representar
sim, mas para visitar e ver espetáculos não. Tenho ascendência espanhola (sou
neto de madrilena), e, por isso, Madrid é para mim uma cidade familiar. A
primeira vez que a visitei tinha 9 anos. Conheci alguma coisa pela mão da minha
avó, que orgulhosamente me mostrou a sua cidade natal e me disse: “Nós vimos
daqui”. Em Madrid, sinto-me em casa. Agora, representar e atuar fora de
Portugal é a primeira vez, e foi muito bom, muito gratificante.
Nós representamos em português, como não podia deixar de ser, e, por isso, o
espetáculo estava legendado, porque a maioria do público era espanhol. Havia
também bastantes portugueses que trabalham, ou estudam, em Madrid, com os quais
confraternizámos após o espetáculo. Mas, para mim, a maior curiosidade foi ter
o feedback dos espanhóis, analisando o nosso trabalho e ouvir: “Entendemos
quase tudo, e quando não entendíamos olhávamos a legenda”. Os portugueses
acolheram-nos com a saudade própria de compatriotas que estão “fora de casa”,
enquanto os espanhóis analisaram o trabalho dos atores portugueses. Éramos
profissionais estrangeiros interpretando uma obra conhecida, e as comparações
eram feitas a partir da referência de atores espanhóis. Ouvi comentários muito
elogiosos de quem não conhecia o meu trabalho anterior; análises profundas à
interpretação de cena e à construção do papel. E, aqui para nós, que ninguém
nos ouve, senti uma pontinha de vaidade.
M.L: Quando
surgiu o interesse pela representação?
G.F: Desde
miúdo. Fiz teatro de escola, depois teatro amador e só vim definitivamente para
o teatro profissional em 1984, ainda que a primeira experiência fosse "Orpheu", dirigido por Águeda de Sena, no
Teatro Aberto (antigo), em 1981. Anteriormente, tinha sido professor de Línguas
no ensino secundário, trabalhando também no Ministério da Educação, primeiro
como bolseiro e depois como destacado, na formação de professores no Ensino das
Línguas Vivas. No final da década de 1970, começara a utilizar-se em Portugal a
técnica da expressão dramática no ensino do Inglês como Língua Estrangeira. Convidaram-me
para me associar à formação de dois grupos, ao nível dos ensinos secundário e
básico. Essa experiência estimulou a necessidade de procurar informação teórica
específica e levou-me ao Conservatório de Lisboa (Escola Superior de Teatro e
Cinema), onde acabei por tirar um segundo curso. Entre 1984-85, tive a possibilidade de estagiar no Teatro Nacional D.
Maria II, sendo nessa altura que optei por deixar de ser professor no ensino
oficial, para ser ator profissional, ainda que continuasse ligado à docência. Atualmente,
estou ligado à investigação no Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de
Letras e ao ensino no curso livre de formação de atores da Universidade
Lusíada.
M.L: Mas antes
de se tornar num ator profissional, foi professor de Inglês e de Alemão no
ensino secundário. Que recordações guarda desse tempo?
G.F: Muito
boas. A minha personagem em “Uma História de Dois”, em determinada altura, diz:
“Eu gosto de dar aulas”. Tal como eu. Dar aulas, em cima de um estrado a falar
para uma pequena plateia, é como um ator em cima de um palco dialogando com o
público. A situação é idêntica: educar é transmitir. São ambos atos de
comunicação que exigem o mesmo grau de convencimento e verdade. Guardo muito
boas recordações do meu passado de professor de Inglês e de Alemão, porque
inclusivamente tenho feedback de antigos alunos, agora já homens e
mulheres casados, mães e pais de filhos, que me encontram e dizem: “Lembro-me
de si. Continuo a vê-lo no ecrã”. É giro, são histórias de vida.
M.L: Ainda na
área do ensino, fez várias coisas. Enquanto bolseiro, fundou em 1976, juntamente
com Isabel Medina e outras pessoas, o English Teaching Group que foi um
projeto-piloto do Ministério da Educação para o ensino de inglês através do
jogo dramático.
Na continuação
do seu trabalho em investigação pedagógica, fundou em 1980, juntamente com
Isabel Medina, Rogério de Carvalho e outros professores, o Grupo de Comunicação
e Teatro no âmbito da formação de professores em ensino multidisciplinar, em
cujo projeto participou numa adaptação ao teatro de “João Sem Medo” da autoria
de José Gomes Ferreira, cuja encenação esteve a cargo do próprio Rogério de
Carvalho.
Desde 2000 que tem
estado a desenvolver atividade docente, tanto na área do ensino artístico, como
na investigação na área de documentação teatral, e, atualmente, faz parte do
núcleo de investigadores do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, e está a preparar o seu doutoramento em Estudos Teatrais.
Orgulha-se dos trabalhos que fez na área do ensino?
G.F: Claro que
me orgulho; têm sido coisas muito boas. Quando o trabalho de investigação
pedo-didático com os meus colegas de ensino, como o Rogério de Carvalho e a
Isabel Medina, chegou ao fim, porque da parte do Ministério de Educação deixou
de haver interesse em continuar a apoiar projetos desse tipo, eu percebi que a
minha vida não seguiria por aquela vertente. Teria de ser feliz de outra
maneira, sem ser a dar aulas de Línguas. Depois do que tinha passado, sentia
como um retrocesso, sem qualquer perspetiva de evoluir na área que mais me
agradava, a da investigação. Sem esta não há evolução no que se transmite. O ensino pode ser uma atividade rotineira. Por isso, é preciso que, sistematicamente,
em qualquer disciplina, em qualquer área, o professor se reinvente, tanto em
termos pedagógicos, como em termos didáticos. Não basta tirar um curso, uma
licenciatura, é preciso manter-se atualizado, apropriar-se da novidade que surge
através da pesquisa, seja nas Ciências Humanas, seja nas Ciências Exatas.
Vivemos um tempo de Ciência e da Tecnologia, até nas áreas das Humanidades. Os
cientistas são seres humanos que pensam sobre a realidade do seu semelhante,
para descobrir aquilo que permita melhorar a vida, no imediato ou a longo
prazo, mas são também pessoas que apreciam o lado artístico do quotidiano. A História
das Mentalidades reflete o pensamento do seu tempo, assim como de quem o
produziu. O teatro, como o romance, e a restante literatura, expressa a
mentalidade do momento em que foi escrito, e dialoga com o espectador, como o
professor com o aluno, sendo, por isso, ao mesmo tempo pedagógico e didático, com
o objetivo de formar consciências. O teatro é de tal forma amplo na sua atuação
que precisa ser estudado, nas suas múltiplas vertentes.
M.L: Em 2008, obteve
o Grau de Mestre em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa com a tese "Percursos
Itinerantes: A Companhia de Rafael de Oliveira". Podia explicar-me um pouco
sobre esta tese?
G.F: Há ainda muita
gente que viu e se lembra da Companhia de Rafael de Oliveira, sobretudo nas cidades
de província, por esse país fora, onde essa companhia de teatro animou os
serões em muitas coletividades, assim como no seu próprio Teatro Desmontável. Atualmente
corresponde a uma realidade desconhecida, que desapareceu após 1974, quando a
evolução do país levou à procura de novas realidades profissionais, novos
modelos de atuação junto das comunidades.
Tive a sorte de
encontrar um neto de Rafael de Oliveira, o Álvaro de Oliveira, que possui um
espólio importante de material diverso guardado preciosamente (livros de
contas, peças, cartazes, recortes de jornais, etc.). Também no Museu do Teatro,
na Biblioteca Nacional, em Lisboa, e em outros arquivos pelo país, fui
encontrando mais documentação. Ainda hoje, após terminar a investigação,
continuo a ser contactado por pessoas que me indicam documentos que desconheço.
Muito recentemente, em Nisa, descobri que a companhia esteve lá, em 1947. Esta
informação veio preencher um hiato informativo na minha investigação.
Que importância
teve então esta companhia? Estamos a falar da última companhia de teatro de
província que houve em Portugal, que existiu entre 1920 e 1975. Foram 55 anos
de vida teatral, que passou de avôs, para filhos, para netos; 3 gerações de
pessoas que trabalharam e que andaram sempre circulando desde Bragança até Vila
Real de Santo António, que viajaram até aos Açores, à Madeira e a Angola. É uma
realidade muito curiosa, partilhada com outras companhias do mesmo estilo. Muitas
companhias itinerantes existiram ao longo da história do teatro, mas esta foi a
última, que não sobreviveu a 1975, quando aquele modelo de funcionamento deixou
de fazer sentido. O teatro revitalizou-se, como sempre, noutras formas e
noutras pessoas, mas nunca mais houve nenhuma companhia de província, ou seja, um
grupo familiar de 14 atores, circulando por Portugal, tendo por sede a
localidade onde estavam instalados, por família alargada o povo que os acolhia
de braços abertos. Durante cerca de 40 anos, no seu Teatro Desmontável, que
instalavam por 3 meses, representaram um repertório de 40 peças, das quais iam selecionando
as peças que mais agradavam ao público local. Subiam também ao palco de
Sociedades Recreativas, divulgando um teatro de agrado popular, feito de dramas
e comédias, como o "Amor de Perdição", a "Rosa do Adro" ou a "Inês de Castro".
Há por isso que
fixar a memória dessa atividade artística perdida, dessas companhias donde sairam
alguns atores que vieram a pisar os palcos de Lisboa, onde fizeram renome: Leónia
Mendes e Camilo de Oliveira, da companhia Rentini; Manuela Maria, que se
estreou aos 5 anos no palco da companhia de Rafael de Oliveira, e cujos pais
tiveram também uma companhia própria com um teatro desmontável, os Mariquina; Tony de Matos, que foi ponto da companhia de Rafael de Oliveira, e onde se estreou a
cantar fado de Coimbra, com 14 anos; Armando Venâncio, descendente da companhia
Moiron, que também teve um teatro desmontável. O Manuel Luís Goucha, que todos conhecemos nos programas televisivos,
estreou-se como ator no teatro desmontável de Armando Venâncio, o Teatro do
Povo, instalado nos terrenos onde hoje se situa o El Corte Inglés de Lisboa. Uma
característica própria destes agrupamentos era a sua tipologia familiar, em que
os filhos seguiam o trilho dos pais. Não sendo Manuel Luís filho de atores, no
fundo, partilhou desse tipo de realidade.
M.L: Em 1986, fundou
a companhia Persona-Teatro de Comédia, C.A.R.L, onde exerceu a função de
diretor até 1991. O que o levou a querer fundar a companhia?
G.F: Houve um
momento em que um pequeno grupo de colegas de Conservatório com quem estava
trabalhando ia ficar sem trabalho. Uma noite, em que saímos do ensaio de "À Procura da Tragédia", no Centro de Arte
Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, desafiei o Miguel Menezes, que hoje em
dia não trabalha como ator, para formar uma companhia de teatro de comédia.
Tínhamos em vista trabalhar o conceito clássico de comédia, não tanto por
vontade de fazer graça, mas pelo género dramático, que deu nome aos atores (os
“cómicos”) e se tornou sinónimo de teatro e de companhia de teatro, como na commedia
dell'arte. Por outro lado, enquanto atores, identificávamo-nos com o nome Persona, como personalidade, e como a
máscara do ator. Tudo isto tinha uma dupla ideia subjacente: por um lado, a
essência do que sentíamos ser o teatro que gostaríamos fazer como profissionais,
e, por outro, na criação de um espaço de trabalho sobre a teatralidade
portuguesa, tão pouco abordada por profissionais. Formamos uma companhia, como cooperativa artística, que abordaria
exclusivamente teatro de autores portugueses, ainda que nos tenhamos estreado
com "O Barbeiro de Sevilha", de (Pierre) Beaumarchais, um texto de rutura, tal como o seu autor, no seu tempo. Juntámos
vários nomes, quase todos colegas de Conservatório, alguns dos quais, neste
momento, se tornaram conhecidos por outros meios: entre outros, o ator-encenador
Paulo Lages, as atrizes Custodia Gallego, Rosa Castro André e Cristina Buero, o ator António
Cordeiro, ou ainda Teresa Côrte-Real, atualmente atriz residente no Teatro
Experimental de Cascais.
M.L: Mãe de Francisco Côrte-Real.
G.F: Exatamente. Aliás, o Francisco Côrte-Real
pisou o palco pela primeira vez, dentro da barriga da mãe, na estreia do
Persona. A Teresa Côrte-Real estava no fim do tempo de gravidez e, não havendo
nenhuma personagem com essas características (aliás só há uma personagem
feminina em "O Barbeiro de Sevilha"), acabou
por fazer travestismo, representando um oficial de diligências, no 2º ato da
comédia. Era um boneco pançudo e façanhudo, com uns bigodes enormes, a única
forma de assumir naturalmente a sua barriga. Às vezes, na brincadeira, costumo
dizer: “O teu filho está a dar cartas como galã; mal sabe ele que o ator que
existe dentro dele nasceu em "O Barbeiro de
Sevilha". Foi o seu batismo simbólico no Persona”. Ele há estreias
inolvidáveis, que deixam marcas para a vida. Ironias do destino?
M.L: Porque é que saiu da companhia?
G.F: Eu não saí da companhia. Eu dirigi a companhia até 1991 e depois a seguir continuo, porque nós não somos eternos e há um tempo que nós podemos dirigir e depois há um tempo em que talvez estamos cansados e vão dar lugar aos outros e naquela altura foi o que aconteceu, houve vários percalços pessoais e que eu estava muito cansado e portanto não era bom para a empresa de que éramos todos sócios de repente eu me estar a arrastar e estar a arrastar as pessoas e então expôs isso e disse “Está na altura de eu ser substituído e outro qualquer que está cá dentro é tão válido quanto eu para continuar.” e foi o que aconteceu. A direção foi para outra pessoa, nunca saí, continuei lá, depois de sair da direção houve uma altura em que eu fui fazer umas coisas fora da companhia, mas depois fui lá fazer uma encenação e estive até ao fim. Não na direção, mas para trabalhar sim.
M.L: Mas guarda
boas recordações de lá?
G.F: Excelentes
recordações. A companhia acabou por uma simples razão: ausência de um espaço
próprio - essa foi a razão do fim do Persona. Tornou-se difícil estar sempre a
trabalhar em espaços cedidos ou alugados, o que, obviamente, não permitia a
estabilidade necessária à continuidade da companhia. O Persona acabou por se
dissolver na impossibilidade de dar continuidade ao trabalho que tinha
desenvolvido. Foram dez anos consecutivos, apresentando duas produções por ano,
subsidiadas pela Secretaria de Estado da Cultura, incluindo algumas digressões
pelo país. Por outro lado, começaram a surgir outros projetos que mostravam ser
interessantes para os atores. O cinema e a televisão começaram a ser um mercado
de trabalho importante e aliciante. Quando o Persona acabou, cada um seguiu o
seu caminho. Há tempos, lembrei-me de desafiar alguns elementos para fazermos um
espetáculo, como acontece com os músicos de bandas que acabaram e regressam
para um encontro de velhos amigos. Não seria para retomar a companhia, mas apenas
pelo gozo de estarmos juntos. Aguardemos que as vontades se conjuguem.
M.L: Faz
teatro, cinema e televisão. Qual destes géneros mais gosta de fazer?
G.F: O que me
dá prazer é representar. Gosto de ser ator e do trabalho que um ator desenvolve,
seja em teatro, cinema, televisão, ou até, convém não esquecer, na rádio. Hoje
em dia, o pouco teatro radiofónico que se ouve, na RDP, está gravado, já só pertence
à memória da rádio, de resto praticamente desapareceu estupidamente. No
estrangeiro continua a existir, como trabalho interessante que é, como
comunicação através da imagem da palavra.
Há algo que me
parece importante transmitir aos alunos das artes de representação: o palco não
é mais nem menos do que o audiovisual, são formas de teatro diferentes, de
igual interesse estético, desde que bem-feitas. O ator é sempre o mesmo; são as
realidades técnicas que distinguem a obra dramática em palco, no cinema, ou na
televisão. No audiovisual, o ator não domina o processo. Essa competência é do
realizador num primeiro passo, do editor de imagem que lhe sucede, e, no topo
da pirâmide, do produtor que investe o dinheiro e faz com que a indústria domine.
É ele que define o que é rentável, box-office, para que tenha retorno
financeiro que lhe permita produzir outras obras.
O ator domina a
interpretação, mas não o processo de construção da narrativa audiovisual,
concebida pelo realizador na escolha das escalas e enquadramentos, e pelo
editor que “cola” as diversas cenas, constituindo a narrativa definitiva, de
cuja respiração o espectador partilha e se emociona. É, por isso, um objeto que
passa por muitas mãos.
No teatro, o
encenador constrói um espetáculo que é produto de muitas linguagens cénicas,
entre elas a interpretação do ator. Como não há dois espetáculos iguais, como não
há dois públicos iguais, porque não partilhamos do mesmo estado de espírito
todos os dias, a repetição daquele ritual que se encenou, que se ensaiou, torna-se
cada dia diferente, forçando o ator a uma grande responsabilidade e criando uma
adrenalina maior. Não há hipótese de se ouvir: “Corta, repete!”. O palco faz
lembrar os diretos em televisão, sem possibilidade de emenda, ou, como no
circo, é estar no arame, sem rede, sem poder olhar para baixo, com medo de cair…
O medo despoleta a adrenalina, a tensão mantem-nos atentos, e, no final, a
descarga do prazer do trabalho bem feito é enorme. Talvez por isso se diga que
quem corre por gosto não cansa. A construção das personagens cénicas faz-se segundo os mesmos processos
de criação mental, é o trabalho de qualquer ator, quando decora um texto e cria
o papel… Antes de mais, temos de ter gosto por aquilo que fazemos, ter prazer
em desenvolver uma ideia e, além disso, possuir conhecimento técnico dos diferentes
veículos com que trabalhamos, se queremos ter qualidade no trabalho que fazemos.
M.L: Desde
“Desencontros” (RTP) que é uma presença regular nas telenovelas. Este é o género
televisivo que mais gosta de fazer?
G.F: Continuo a dizer, gosto muito de representar e invisto nos papéis
que faço. A novela é um género curioso, por vários motivos. Desde que se
queira, consegue por a cabeça a trabalhar muito mais do que se possa pensar, por
uma razão muito simples: enquanto uma série apresenta um todo que o ator
conhece desde o início, porque se trata de texto completo à partida, numa
novela nunca se sabe como vai finalizar, em virtude da sua extensão, 150, 200 ou
mais episódios. Nos primeiros 20 episódios, as personagens definem-se, de modo
que o espectador apreenda a personalidade fundamental das personagens
nucleares: se é vilão, se é bom, se é um apaixonado. Tudo deve ser definido nos
primeiros episódios, para que daí para a frente o espectador possa compreender
a vida quotidiana das personagens. A novela tem variações do ponto de vista de
escrita à medida que o share das audiências exerce influência. O
produtor percebe até que ponto as audiências demonstram maior interesse por
determinadas situações, personagens ou núcleos sociais, e esses dados
influenciam a continuidade da novela. Se o público deixa de gostar de uma
personagem, não faz sentido prolongar a sua existência no enredo, sob pena de
perda de audiências e de lucros.
M.L: E aumenta
os episódios também.
G.F: Também
pode acontecer isso; desde que o público goste e o ator tenha investido na
qualidade do seu trabalho. A escrita dramática da personagem é um setor que o
ator desconhece, portanto estamos sempre à espera de sermos desafiados a
trilhar caminhos que não estamos à espera. O grande jogo para o ator, e a parte
mais interessante da novela, talvez seja isso: ser capaz de encaixar as fugas
das personagens para caminhos inesperados. Mas, pensando bem, também é algo que
nos pode acontecer na vida real. Julgamos estar certos do nosso percurso até ao
momento em que, de repente, nos aparece um obstáculo, que nos obriga a mudar os
planos.
M.L: Como lida com a carga horária, quando grava uma telenovela?
G.F: Costumo dizer, em tom de brincadeira, que deve ser
como estar numa ordem religiosa em convento de clausura: não há tempo para mais
nada, a não ser para a devoção. Estamos sujeitos a uma grande carga horária, tanto em estúdio, como fora da gravação; quando regressamos
a casa é para estudar os textos do dia seguinte. À sexta-feira recebem-se os
planos da semana seguinte e começamos a fazer a parte administrativa: dividir
as cenas pelos dias de trabalho, lê-las com atenção, procurar a lógica
narrativa, porque não gravamos os episódios em sequência, mas consoante os décors.
Podemos gravar cenas do 1º episódio, do 10º, do 15º, conforme a sequência do
cenário em que estamos a gravar, o que implica um trabalho específico que as
pessoas não se apercebem em casa, depois de ser editado o episódio.
M.L: Um dos
seus trabalhos mais marcantes em televisão foi a série “Duarte e Companhia”,
que foi exibida na RTP entre 1985 e 1989, na qual interpretou o vilão Lúcifer.
Que recordações guarda desse trabalho?
G.F: Foi o meu
segundo trabalho, e aquele que me projetou, que me abriu um caminho na
profissão. O primeiro chamou-se “Mátria” (RTP), escrito por Natália Correia e
realizado por Dórdio Guimarães, duas grandes figuras do panorama intelectual
português que infelizmente já morreram. “Mátria” foi um projeto conjunto de uma
poetisa e escritora, e um artista plástico.
A experiência do
“Duarte e Companhia” foi muito engraçada. Tinha acabado o Conservatório meses
antes, estava a trabalhar no Teatro Nacional e, um dia, recebo o
telefonema do realizador Rogério Ceitil convidando para o papel de Lúcifer. O
meu nome para o papel fora indicado pelo Rui Mendes, que tinha sido meu
professor no Conservatório, e acaba por ser o meu “padrinho” na ficção televisiva.
A primeira cena de “Duarte e Companhia” que gravei foi exatamente com ele, como
forma de apoio de um colega experiente. Supostamente só devia ter feito 3
episódios, mas a figura acabou por ser do agrado do realizador que a prolongou
até ao fim.
O “Duarte e Companhia” teve aspetos curiosos: inicialmente, foi uma
série muita contestada, que não foi do agrado geral, porque não se percebia se
era uma comédia ou uma série dramática, como o “Zé Gato” (RTP), que o mesmo
realizador filmara anteriormente. Parecia um disparate pegado. Porém, no fundo,
tratava-se de uma paródia às séries policiais, aos sucessos televisivos e
cinematográficos da altura: “O Padrinho” (1972) ou a “O Justiceiro” (1982/1986).
A paródia é um género de características muito populares, que requer o
conhecimento dos referentes que parodia. Naquela altura, na televisão, estavam
na moda as séries com artes marciais e de aventuras. Fizemos à portuguesa uma
paródia aos heróis bem sucedidos, criando vários tipos de portuguesinhos
malandros que querem ser mais do que podem, copiando os modelos importados de
fora. O Lúcifer e seus comparsas não passam de um bando de mafiosos falhados sem
talento e meios próprios para serem como os grandes mafiosos internacionais.
Também a dupla Duarte e Tó, mais a sua assistente Joaninha, não passam de
simulacros de detetives privados (os private
eyes à americana), a quem falta sabedoria técnica, mas que compensam com o
tão típico espírito de desenrascanço à portuguesa. Foi sem dúvida uma das
primeiras sitcoms humorísticas
nacionais, como as que mais tarde acabaríamos por importar do Reino Unido ou
dos Estados Unidos.
M.L: Como foi trabalhar com o realizador da série Rogério Ceitil?
G.F: O Rogério é uma
pessoa muito interessante, que conheci nessa altura, e com quem voltei a
trabalhar em outras séries. Uma das grandes virtualidades do Rogério era a de
ser um cineasta, um cinéfilo, um conhecedor da história da 7ª Arte e da construção
do produto cinematográfico. Para mim, é esta faceta que sustenta a delirante
inteligência imaginativa, que se reflete na sua capacidade de escrita para o
pequeno ecrã, associada à sensibilidade como editor de imagem. Penso que, de
alguma forma, foi um injustiçado por causa do “Duarte e Companhia”. As pessoas
não lhe deram o devido valor, porque partiram do preconceito de a série não ter
valor evidente. Nada mais enganoso, como se provou posteriormente, quando se
tornou em série de culto. A chamada “grande cultura” é feita de obras tornadas
canónicas por uma elite em determinado tempo, ao passo que a “pequena cultura”,
bem mais vasta do que a outra, acaba por perecer com o tempo e a falta de
estudo sobre ela. Mas, na verdade, no seu tempo foi essa cultura popular que
atraiu as grandes massas e que sustentou uma indústria do espetáculo do seu
tempo. Um fenómeno que aconteceu com a literatura, o teatro, o cinema, e que
não poderia deixar de acontecer na rádio e na televisão.
M.L: Hoje em
dia, já não trabalha tanto como antes.
G.F: O Rogério,
tanto quanto eu sei, tem-se dedicado mais à temática documental, em detrimento da
ficção. Porém, antes do “Duarte e Companhia”, já o Rogério Ceitil realizara, em
1975, a longa-metragem documental “Cantigamente Nº 4” (RTP), sobre a década de 50 e 60 do século XX. E, em 1979, o “Zé Gato”, uma série
policial a sério, com Orlando Costa, como protagonista. Curiosamente, a ideia do
“Duarte e Companhia” surgiu no último episódio do “Zé Gato”, por um percalço. Orlando
Costa tinha sofrido um acidente, que lhe provocara uma fratura, tendo de ser
substituído pelo Rui Mendes, que imprimiu um cunho próprio à personagem do Zé
Gato, transformando-a no que viria a ser o Duarte, do “Duarte e Companhia”,
cheio de ironia e boa disposição.
M.L: Como vê, atualmente, o teatro e a ficção nacional?
G.F: A televisão funciona
como um veículo de comunicação e de divulgação de atores, que pode atrair ao
teatro o público desejoso de ver aqueles que viram na televisão. Isso é
excelente. Todavia, é pena que esta não funcione como veículo de divulgação do
próprio teatro, seja pela transmissão de peças televisionadas, como já
aconteceu em tempos passados, seja por uma melhor divulgação do cartaz de
espetáculos em horário mais apropriado. Qualquer das possibilidades corresponde
às competências cultural e noticiarista da caixinha que mudou o Mundo, antes de
se transformar em eletrodoméstico. As televisões exibem os programas de
divulgação cultural após a meia-noite. Pergunta-se obviamente para quem. Para quem
estiver com insónia? Quem tiver de se levantar cedo para trabalhar, não estará
certamente a vê-los. Creio que o melhor espaço para um cartaz de espetáculos,
mesmo que breve, seria no fim de um espaço informativo, como o telejornal.
Apesar de tudo,
o teatro parece-me estar bem, ainda que toda a gente diga que está em crise.
Mas a verdade é que historicamente o teatro sempre esteve em crise, e disso
retirou a sua vitalidade. Sempre houve crises económicas e, para sobreviver, os
profissionais sempre inventaram formas de ultrapassá-las. Neste momento vive-se
uma crise de falta de espaços convencionais, com a demolição de muitos teatros
e a dificuldade de atuar nos que se encontram afetos a entidades específicas. Algumas
companhias de teatro independente têm contudo servido o propósito de albergar
grupos de atores e dos seus projetos individuais, como é o caso da Comuna, da
Barraca, ou do Teatro Aberto. Por outro lado, assistimos ao aparecimento de
grupos de jovens que criam o seu próprio teatro de pesquisa e experimentação,
em espaços não convencionais, que, em tom de brincadeira, eu designaria por
“teatro de vão de escada”, ou, inspirando-me na música, “teatro de garagem”
(como a ideia assumida pelo Carlos J. Pessoa, em 1989). São tempos performativos
de novas contestações e propostas de vanguarda, sem o aparato dos seus
antepassados, os grupos do pós-guerra.
Atualmente,
pode fazer-se teatro em qualquer sítio que albergue um grupo de espectadores,
até ao domicílio, como no século XIX. Os “Commedia a la Carte”, os pioneiros em
Portugal da comédia de improviso interativa, criam situações que surgem de
propostas do público, em que alguns acabam por ser convidados a subir ao palco
e a interagir com os atores profissionais.
Também há
alguns anos que o ator Raul Orofino vem desenvolvendo o conceito de teatro ao
domicílio. Uma novidade em Portugal, porém vulgar em outras culturas, como na Argentina,
onde a vivência teatral é muito grande, existindo qualquer coisa como 300 salas
de espetáculo, uma esfera de pequenas salas, de anfiteatros, de pequenos
espaços, onde se pode fazer teatro sobre temas do quotidiano. Em Inglaterra,
por exemplo, podemos ir almoçar a um pub,
em cujo primeiro andar existe uma sala onde se representa um teatro rápido.
Carrega-se o tabuleiro com a sanduíche e a cerveja, e almoçamos ao som da
comédia dramática.
A proliferação
de espaços não convencionais pode ser de grande interesse para um público
específico, que permita a exibição de grupos de teatro escolar, de
coletividades, ou até de amigos que se juntam por algum motivo especial, mas
isso não invalida a necessidade de existência de teatros convencionais, capazes
de acolher projetos de maior dimensão e a circulação dos profissionais pelo
resto do País. Felizmente, em Portugal, existem equipamentos excelentes. Aqui
no Norte, é o caso do Theatro Circo de Braga, dos Teatros Municipais de Bragança
e de Vila Real, da Casa das Artes de Famalicão e de tantos outros, construídos
de raiz ou fruto da recuperação de velhos edifícios. O Porto também possui diversas
salas, e excelentes profissionais, com projetos de formação e divulgação
teatral, como o Teatro do Bolhão, do António Capelo, ou escolas de grande
interesse, como a ESMAE, a Academia, ou o Ballet Teatro. Mas obviamente que se
trata da segunda cidade do país.
Por fim, é
preciso começar fazer um trabalho de identificação e divulgação das
coletividades que desenvolvem atividades artísticas de importância local, para
evitar o falso conceito de vazio cultural na província. Dizia-me um jornalista há
dias: “Tirando Lisboa e Porto, não há muito teatro em Portugal”. Respondi-lhe:
“Cada vez há mais e felizmente”. Tanto profissional, como amador, produzem-se
festivais de grande interesse. A sua falta de divulgação conduz ao desconhecimento
e a conclusões erradas.
M.L: Em 2011, celebra 30 anos de carreira, desde que começou com a peça “Orpheu”, no Teatro Aberto em 1981. Que balanço faz destes 30 anos?
G.F: Não penso nisso, não sou muito saudosista. Mesmo
quando me encontro com amigos da adolescência, e falamos do passado, é sempre
com uma pontinha de cinismo (daquele cinismo filosófico), sem termos aquela
ideia de “Ai, que bom que seria voltar atrás e repetir”. Gosto de ter a idade
que tenho e de fazer as coisas que posso fazer, portanto não faço assim
balanços históricos. É bom, gosto e quero continuar, ainda não me vou reformar,
até porque talvez não vá haver reforma, e o melhor seja estar a trabalhar.
M.L: Gostava de ter feito uma carreira internacional?
G.F: Sim. Se eu
fosse músico, teria sido possivelmente mais simples. A música é uma linguagem
internacional que não precisa de tradutores. Ainda assim, tenho participado em algumas
produções internacionais, a nível do cinema e da televisão. Imprescindível
destacar a participação na longa-metragem "Street
of No Return" ("Rua Sem Regresso" (1989), realizada pelo norte-americano Samuel Fuller, um senhor muito
singular, que foi um dos “monstros” de Hollywood, no tempo de John Ford (da
Meca do Cinema). Este foi o último filme que realizou, filmado em grande parte
em Portugal, que me permitiu ter a possibilidade de privar com este realizador,
e também com outros atores como o Keith Carradine, ou a Valentina Vargas, entre
outros. Para quem estava a começar uma carreira, tratou-se de uma oportunidade
única de contactar com uma realidade diferente e com profissionais que apenas
víamos na tela do cinema. Senti-me todavia muito apoiado; Keith Carradine percebeu
a minha insegurança e deu-me algumas dicas, do tipo “Pára, pensa, escolhe o
mais simples”. Não tivemos mais conversas para além disso. O mesmo não se
passou com o realizador, que simpatizou comigo e mostrou interesse pelo jovem
ator português (éramos apenas três) que fazia o papel de polícia no seu filme. Fuller
era um homem baixo, tinha 80 anos, e a sua bengala era um charuto, que ia
acendendo uns nos outros à medida que terminavam. Como Alfred Hitchcock, também
assinava os filmes, fazendo uma pequena participação no enredo. Naquelas longas
esperas que são comuns no cinema, em que se organiza o cenário, se ilumina, a
se coloca a câmara para filmar, inesperadamente Fuller dava-me o braço,
convidava-me a deambular com ele e perguntou-me: “Porque queres ser ator?”. Às 3h00 da manhã, com um frio insuportável, a conversa levava por outros caminhos
interessantes sobre a profissão e sobre a psicologia do ator: “Pensa sempre com
profundidade; a arte é uma reflexão sobre a vida. Tudo na vida
tem um lado dramático e um lado cómico. Quando interpretares uma personagem
triste, pensa no seu lado cómico, e quando for uma personagem divertida, pensa
no seu lado trágico”. Nunca mais esqueci esta abordagem dialética, que me
propunha de forma clara e precisa.
Dele tive ainda
a maior prova de respeito que um ator pode ter em plateau, quando estávamos a filmar uma cena de sequência, com travelling de câmara, um plano
complicado que obrigava a um movimento de câmara entre um décor de
partida e outro de chegada, correspondendo à passagem do Comissário,
interpretado pelo próprio Fuller. A cena obrigava a um rigor de marcação entre
nós e o cameraman. Samuel Fuller não participava
diretamente, mas apenas em silhueta, um boneco plano em cartolina negra, que
passava à frente da luz, projetando a sua sombra na parede por trás de mim.
Tudo isto era executado por um técnico que, ao sinal, passava o boneco à frente
de um projetor, enquanto eu devia reagir à passagem do suposto Comissário,
fazendo continência. A minha reação dependia, portanto, da ação do técnico. O cameraman e diretor de fotografia era francês; fazia parte
de uma equipa maioritariamente estrangeira. Ao executar o travelling,
terá acontecido qualquer percalço, e não ficou satisfeito. Mal-disposto, mandou
cortar e repetir. Pelo tom de voz percebi que ia arranjar um bode expiatório: eu
era o mais novato naquilo tudo. Apontou para mim e, com um “aquele” de
desprezo, acusou-me de não ter executado a marcação como havia feito no ensaio. Fuller resolveu diplomaticamente o conflito; voltando-se para o diretor
de fotografia, disse: “Aquele é um ator. Não fez da mesma maneira, porque
sentiu de maneira diferente”. Tudo se preparou para a repetição, enquanto
Fuller se me dirigia: “O que é que aconteceu?”. Respondi-lhe que o movimento da
silhueta fora diferente e que eu devia reagir organicamente à passagem do
Comissário. “Está certo. Faz como deves fazer”, rematou o realizador. Foi esta
uma grande prova de respeito entre profissionais, sobretudo, sendo o diretor um
profissional conceituado e o ator um jovem debutante. Com atitudes deste tipo
aprende-se de forma consciente e prazerosa.
M.L: Que
trabalhos mais o marcaram, no teatro, no cinema e na televisão?
G.F: Em teatro,
há vários espetáculos que me marcaram; pelos locais onde se realizaram, pelas
pessoas que neles participaram, mas, sobretudo, pela dificuldade que continham.
Desde logo o primeiro, em 1984, ainda como aluno da Escola de Teatro, quando me
estreio no Teatro D. Maria II, na peça "Poe
ou o Corvo", de Fiama Pais Brandão. Texto difícil, existencial, a exigir uma
elaboração psicológica da personagem, o protagonista masculino, por um
estreante, com responsabilidade acrescida na contracena com três atrizes da
companhia daquele teatro: Maria Amélia Matta, Guida Maria e Luz Franco. No ano
seguinte, foi a vez de representar a figura de Orestes, na tragédia "Pílades", de Pier Paolo Pasolini, em
estreia absoluta do autor em Portugal, com encenação de Mário Feliciano. Mais
uma vez, um texto complexo, em que a sorte me bateu à porta, e pude apoiar-me
na contracena de um colega mais experiente, o António Capelo. As dificuldades sempre me motivaram o gozo da representação.
Mais
recentemente, estive ligado a um projeto de ópera de câmara, em estreia
absoluta: "O Fim", música de Carlos
Marecos, e libreto de Paulo Lages, sobre a peça homónima de António Patrício. A
obra foi construída propositadamente para uma soprano e um ator, interpretando
a Rainha e o Desconhecido, respetivamente. Embora não me competisse cantar, na
realidade eu devia seguir com rigor uma partitura, que me impunha ritmo e
cadência próprias na elocução. Valeu-me o facto de saber ler música, mas nem
por isso deixou de ser um trabalho difícil. Havia momentos em que a orquestra seguia
o meu tempo interpretativo, estando as árias escritas desse modo, e outros que
não, com árias faladas a exigir um grau de dificuldade idêntico ao do cantor. A
tudo isto acrescia o facto de ser um longo monólogo de vinte minutos em cena,
na segunda parte do espetáculo, após a personagem da Rainha o ter feito durante
meia hora, na primeira parte. Foi um dos espetáculos mais problemáticos, pelo
medo de falhar que me infundia. Às vezes desabafava com Margarida Marecos, a
protagonista: “Se vocês se esquecerem da letra podem cantar em lá-lá-lá, mas eu
não posso”. Se eu me esquecesse, a música continuaria certamente, sem eu saber
o que fazer. Esta dificuldade ficou sendo um marco na minha carreira,
demonstrando que uma pequena falha pode implicar a destruição de tudo; é, por
isso, construir com solidez, para que possa surgir um grande momento de
interpretação.
Ao nível da televisão,
em termos de dificuldade, lembro o Paulo, o vilão da novela "Vidas de Sal" (RTP), de Tozé Martinho, em que contracenei com colegas de grande prestígio, como Mariana Rey
Monteiro, recentemente falecida, que recordo com muita emoção, e também Maria
Dulce, Henrique Viana, Manuela Maria ou Simone de Oliveira. Posso gabar-me de
ter a sorte de ter trabalhado com a velha geração, que me ensinou muita coisa, sobretudo
quando nos contam as histórias, testemunho das suas vidas. São momentos muito engraçados,
em que nos divertimos imenso enquanto aprendemos. Foi um vilão dramático, muito
problemático, que foi construído também pela forte contracena que me davam os
mais velhos e os mais novos, muitos dos quais se estreavam então, e agora são
reconhecidos pela sua qualidade, como a Patrícia Tavares, a Ana Brito e Cunha
ou a Sofia Grillo.
Outra personagem que me deu muito gozo, com características de vilão de
comédia, foi o Rogério Sapinho dos "Morangos
com Açúcar" (TVI), um professor caricato, que me permitiu usar o registo de
farsa da commedia dell'arte. Valeu-me, neste caso, a grande cumplicidade
com os realizadores (Atíllio Riccó e Hugo de Sousa) e com os colegas com quem
mais contracenava, em que fomos desenvolvendo um processo de trabalho apoiado
no diálogo constante, na procura da melhor forma de apresentar a personagem em
situação: uma construção em equipa, que se recorda como um trabalho que permite
crescer profissionalmente em conjunto.
M.L: Quais são os seus próximos projetos, quando a digressão de “Uma História de Dois” terminar?
G.F: Continuar a investigação e terminar o meu
doutoramento, que é sempre um projeto complicado para qualquer pessoa que o esteja
a fazer. Para já, não tenho nenhuma peça, o que for será. Não sei ainda.
M.L: Qual foi a
figura da representação que mais o marcou, durante o seu percurso como ator?
G.F: Várias. A todos fui buscar um bocadinho. Com Eunice Muñoz
compreendi o valor do silêncio em palco; com Ruy de Carvalho, o poder da
palavra em palco; com Barroso Lopes, com Irene Isidro, ambos já falecidos, que
muitos conhecem do cinema popular, o prazer de estar em cena, mesmo em papéis
aparentemente insignificantes; com Rui Mendes, meu professor de teatro na
escola, o sentido de expressar a ironia em cena; e até com a Teresa Guilherme,
agora mais recente, a forma como se luta por um sonho na dura realidade que nos
rodeia. Aos mais velhos vou buscar algo muito importante, a aparência de simplicidade.
As coisas boas parecem simples, porque foram inicialmente bem pensadas, para
poderem chegar límpidas ao espetador, no momento do espetáculo, para que ele
seja um produto artístico, um produto que transforme não só quem o fez, como
quem o viu. Foi isso que eu aprendi não só com os mais velhos, mas também com
os mais novos, porque todos partilhamos as mesmas preocupações e os mesmos
medos de errar. No fundo, somos desassossegados pela vontade de fazer bem feito,
de forma interessante, de ser feliz da vida, para fazer os outros felizes. Acho
que essa é a grande aprendizagem como pessoa/ator.
M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha feito ainda?
G.F: Ainda não fiz tanta coisa. Não sou capaz de
responder. De repente, não me ocorre nada que eu gostasse de fazer. Mas estarei alerta para evitar que me escape cruzar-me com uma possibilidade
de fazer qualquer coisa que eu ainda não tinha feito e possa fazer.
M.L: Se não
fosse o Guilherme Filipe, qual era o ator que gostava de ter sido?
G.F: Como disse, acho que o Guilherme Filipe é de alguma forma um
bocadinho de todos os atores que gostaria de ser. A todos vai buscar um
elemento fundamental, um ponto de referência qualitativa em termos de
interpretação. Ao nível do cinema, fui fã do Robert DeNiro, numa primeira fase,
a que se seguiu o Al Pacino, e o Dustin Hoffman. Eles constituem um padrão de
fruição artística, ao mesmo tempo que representam um estudo de caso sobre
técnicas de representação, na sua área. O mesmo acontece com os atores de
teatro, sejam estrangeiros ou nacionais. Quando observo uma atriz como Eunice Muñoz
a representar, disfruto no seu processo de trabalho a sabedoria de uma vida que
ela consegue sintetizar no momento da representação em cena. Como eles (sem
arrogância), gostaria de ser um Guilherme Filipe portador de uma centelha de
inteligência, de cultura que me transforme continuamente, para conseguir ser um
melhor ator Guilherme Filipe.ML
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