
M.L: Quando surgiu o interesse pela representação?
F.G: Não sei bem. A representação
surgiu na sequência de uma necessidade de me expressar, passando primeiro por
outras artes (fotografia, dança, música, canto) que experimentei com maior ou
menor grau de empenho. Todas elas concorreram para me levar até à representação.
Penso que não fui eu que decidi ser atriz, foram as artes da representação que
me decidiram aceitar.
M.L: Quais são as suas referências, enquanto atriz?
F.G: Muitos dos colegas
com quem tive o privilégio de trabalhar e me ensinaram tudo o que sei. Armando
Cortez, Henrique Canto e Castro, Nicolau Breyner, Manuela Maria, Eunice Muñoz, Pompeu
José, Raul Solnado, Graça Bessa, António Rodrigues e tantos outros
professores e amigos que são as minhas referências de trabalho e de
profissionalismo.
M.L: Houve um trabalho específico que tenha provocado
exigência e talvez algum desgaste emocional em si ao longo do seu percurso como
atriz?
F.G: Todos sem exceção,
por um motivo ou por outro, puseram à prova as minhas capacidades. Nem todos
me exigiram o mesmo esforço mas todos me entregaram alguma coisa preciosa pela
qual valeu a pena lutar. Alguns devolveram-me a alegria da recompensa do
aplauso e do reconhecimento, outros nem tanto. Sinto-me grata à minha
profissão, pelo que me tem dado e não conheço outro modo de trabalhar, sem ser
com uma entrega total. Por isso, não, não há um que se destaque.
M.L: Em 2002, participou na telenovela “Sonhos
Traídos” que foi exibida na TVI, na qual interpretou a personagem Maria de
Lurdes Pereira. Tendo em conta que era uma personagem ciumenta para com o
marido e que não conseguiu grandes feitos na vida, como é que se preparou na
altura para o papel no sentido de tentar entender a Maria de Lurdes e as suas
motivações?
F.G: Não compete ao ator/atriz
fazer juízos de valor à sua personagem, mas sim, compreender-lhe as motivações,
dentro das circunstâncias em que é posta. Que me lembre, a Maria de Lurdes era
uma dona de casa, costureira por necessidade, com uma instrução básica, preterida
pelo marido, a lutar por manter o lar enquanto trabalhava e criava um filho
sozinha. Uma mulher como tantas outras, guerreira do quotidiano, sem nome nos
jornais, nem medalhas no 10 de Junho, mas que, são o tecido mais profundo da
sociedade. Creio que a função narrativa da personagem era esta mesma. O
conflito da Maria de Lurdes é com a alteração de paradigmas que vêm abalar o
seu pequeno mundo, desestabilizando a sua relação com os outros e consigo.
Um mundo que ela não sabe, ou não quer compreender, acabando cruelmente louca e
encarcerada. Isto, foi o que eu compreendi da Maria de Lurdes. Se ela não
alcança grandes feitos, ou se é ciumenta, não sei, provavelmente será isso e
também tantas outras coisas. A verdade é que não há luz sem escuridão. Nunca
uma personagem, tal como as pessoas em que se inspira, é totalmente
"boa" ou "má", feliz ou infeliz, "escura" ou
"clara". É essa a função do ator/atriz. Extrair todos os cambiantes
possíveis dentro do espectro da personagem. Compete ao espectador avaliar
a verdade da representação do ator/atriz identificando-se ou não com a
"verdade" da personagem.
Filomena Gonçalves como "Maria de Lurdes Pereira" em "Sonhos Traídos" (0:03)
M.L: A meu ver, tem sido muito subestimada como atriz
ao longo das últimas 3 décadas de representação. Acha que, um dia, lhe vão dar
um maior reconhecimento a nível artístico?
F.G: Não me sinto
subestimada, mas sim, feliz, com o percurso que me foi possível fazer, pelo
qual lutei e continuo a lutar. Sinto-me estimada por colegas, dentro e fora de
cena, das mais diferentes idades ou proveniências. Respeitada pelo público que
não me esqueceu, apesar das maiores ou menores ausências, a que nos votamos. O
que me move é a esperança de alcançar melhor, construir mais, quando e sempre
que houver oportunidade. É um caminho que se vai percorrendo com as armas e a
bagagem que vamos tendo e ainda há muito para fazer. Não estou preocupada com o
julgamento do tempo, nem nunca trabalhei para alcançar reconhecimento, mas tão
só, com honestidade, tentar ultrapassar os diferentes desafios e obstáculos que
se vão apresentando, ao longo da minha carreira. Os criadores aprendem a
resiliência, estão preparados para aceitar a crítica, não esperam unanimidade e
tentam viver com graça os altos e baixos da vida. Não sei se correspondo a este
retrato mas são estas as linhas que me orientam.
M.L: Desde 1998 que é casada com Francisco Moita
Flores. Como olha para o percurso tanto artístico como policial e político que
o seu marido tem desenvolvido até agora?
F.G: Não olho. Os meus olhos são os da companheira que aceitou partilhar
a vida com alguém que ama e admira. É um olhar íntimo, pessoal, não sobre a
carreira mas o homem.
Filomena Gonçalves e Francisco Moita Flores
M.L: Que balanço faz do percurso que tem desenvolvido até agora como atriz?
F.G: É de facto o tempo
para balanço no Deve e Haver da minha carreira. Tenho consciência dos erros que
cometi e não quero voltar a fazer, do que está bem e pode ser explorado e
melhorado.
M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha
feito ainda nesta altura da sua vida?
F.G: Uma só? De um modo
genérico pretendo dedicar-me aos erros.ML
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