M.L: Quando surgiu o interesse pela representação?
A.D: Na verdade, eu não
tenho sinalizado propriamente um
momento certo para que as coisas tenham progredido por esta via. Vivia mais ou
menos perto de um palco de uma salinha de teatro, quase familiar diria, e esse
cantinho sempre funcionou para mim como uma espécie de sítio de refúgio e um
local onde me escondia e onde me sentia mais ou menos seguro. Mas é evidente
que nunca imaginei que mais tarde pudesse vir a fazer vida dessa atração, dessa
sensação de segurança, uma hipótese de caminho. Sentia-me seguro, preservado no
meio daquela escuridão em que tantas vezes está envolvido o palco. Ler um livro
lá, por exemplo, completamente sozinho, é uma sensação incrível. Mas era só
isso. Também era uma fuga às responsabilidades diárias. Às que apetecia menos
cumprir... Depois acabei por frequentar os grupos de teatro na escola e
inventá-los e fazer parte deles, depois os grupos de teatro amadores, depois a
escola de teatro, depois os grupos profissionais… Foi uma espécie de caminho
que eu fui fazendo sem que me desse propriamente conta de que o estava a fazer,
como se as coisas fossem só acontecendo e me fosse deixando ir mais ou menos
confortável por esse rio acima, como diz a canção.
M.L: Quais são as suas referências, enquanto ator?
A.D: Tenho imensas referências, imensos atores nos quais me
revejo (ainda que nunca tenha tentado copiar nenhum), mais velhos do que eu e
que me ensinaram imensas coisas. Foi muito importante para mim o trabalho
realizado, no caso concreto, no antigo Centro Cultural de Évora, agora chama-se
Centro Dramático de Évora. Aqueles atores que trabalhavam no Teatro Garcia de
Resende em Évora e com os quais eu aprendi imenso, durante o curso. Muito,
também, com todas as companhias de teatro e todos os artistas (músicos,
bailarinos, etc.) que frequentaram aquele palco e com quem eu tive a
oportunidade, durante esse período de formação, de conviver e com quem fui
aprendendo vendo. Aprendi muito nos ensaios, espreitando os ensaios da
companhia de teatro do Centro Cultural de Évora. Aprendi muito em todos os
lugares, mas mais, talvez, no Teatro Nacional São João, com os atores com quem
me fui cruzando, com os atores e com os encenadores... Mas, hoje, diria que as
minhas referências, aqueles para quem eu olho com uma atenção muito especial,
não deixando de lado naturalmente os atores da minha geração, mais velhos do
que eu ou um pouco mais novos, são os jovens atores com quem eu tenho vindo a
cruzar-me em diferentes momentos da formação deles e da minha também que
continua permanentemente a realizar-se. É com eles que aprendi mais. E em quem me
revejo. E que invejo um bocadinho porque, tantos deles, são capazes de
responder já hoje de uma maneira que eu nunca serei capaz de responder. E por
isso os invejo, às vezes...
M.L: De tudo o que tem feito até agora como ator,
houve algum trabalho em particular em que se sentiu algo diferente?
A.D: Claro que há sempre espetáculos que nos marcam mais por
razões que às vezes desconhecemos. Eu lembro-me muitas vezes (se questionado,
como agora) assim, imediatamente, de dois espetáculos que realizei em circunstâncias
diferentes, em momentos diferentes também, da minha formação e da minha vida: o
último espetáculo que eu realizei, enquanto ator amador, na Figueira da Foz e
que se chamou “CicloMimo-Exercícios Combinados” e que era um espetáculo sem
palavras, onde tudo aquilo que eu precisava de dizer, não verbalizando, era
"dito" por intermédio de uma guitarra do (fantástico) músico
português José Luís Iglésias. Esse foi um espetáculo marcante para mim. O
outro, evidentemente já enquanto profissional, foi na Companhia de Teatro de
Braga, que se chamou “O Fetichista”, porque foi o primeiro espetáculo que fiz
como encenador e portanto foi também um momento muito marcante. Curiosamente,
quase que reuni completamente a equipa com quem tinha feito aquele último espetáculo
como amador, o que também pode ser revelador de outra coisa qualquer que também
não sei exatamente o que é. Um agradecimento, talvez, mas também uma espécie de
porto-seguro sim. E depois houve tantos outros espetáculos que eu organizei e
que foram marcantes, mas para todos os efeitos o mais importante é sempre
aquele que estou a fazer agora. E agora o que estou a fazer é “Os Últimos Dias
da Humanidade”, que em Janeiro estará no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.
António Durães como o "Eterno Descontente" em "Os Últimos Dias da Humanidade" |
M.L: Além da representação, também tem uma larga
experiência na encenação. A seu ver, o António ator é indissociável ao António
encenador ou são dois lados muito distintos?
A.D: Eu creio que os dois caminhos sendo diferentes, são complementares.
É claro que estamos a trabalhar o mesmo material, mas com pontos de vista
diferentes. É curioso, porque eu acho que funciono de maneira completamente
diferente numa ou noutra função. É como se eu tivesse a capacidade, quando
enceno, de ver bastante mais do que aquilo que sou capaz de ver como ator. A
amplitude do meu olhar é diferente, fisicamente mesmo.
M.L: Interpretou D. Afonso Henriques em “Capitão
Falcão”, a sátira ao Estado Novo realizada por João Leitão em 2015. Que
recordações guarda da sua participação no que é também uma abordagem ao universo
dos super-heróis?
A.D: O João convidou-me para participar nesse filme que
inicialmente era para ser uma série, e esse convite honrou-me muito, e foi
muito divertido sobretudo. Uma experiência muito interessante. Eu gosto muito
de participar em projetos que me coloquem um bocadinho fora do meu sítio. Cada
vez que me convidam para participar no que quer que seja, fico sempre muito
surpreendido: como é que alguém se lembra de mim, que estou tão longe dos
holofotes, fisicamente longe mesmo, na convicção de que posso acrescentar
alguma coisa aos projetos que desejam tanto fazer... É um milagre. E eu,
contentíssimo, aceito.
António Durães como "D. Afonso Henriques" em "Capitão Falcão" |
M.L: Em 2016 celebra 32 anos de carreira, desde que se
estreou como ator profissional em 1984. Que balanço faz destes 32 anos?
A.D: Passaram muito depressa, acho eu. Olhando para trás, recordo-me
de muitas coisas, de muitas coisas que fiz, mas a minha memória, num primeiro
momento é muito seletiva. Acho que recordo muito mais as coisas que fiz e que
gostei de fazer e que me serviram muito, do que aquelas que me custaram a fazer.
Eu recordo-as com satisfação, embora não seja muito de olhar para trás. Mas às
vezes também recordo as coisas que correram menos bem. Há uma lição a tirar
sempre de todas as experiências...
M.L: A sua vida tem passado nomeadamente pelo Norte
tanto a nível pessoal como profissional. Como olha, hoje em dia, para o Norte
artisticamente?
A.D: Eu olho para o Norte e no que diz respeito ao teatro com
algum pessimismo. Quero crer que muitas das soluções que ainda não foram
experimentadas e portanto ainda não foram encontradas irão passar por esta
gente nova que está a surgir, porque eles têm uma capacidade diferente de olhar
para estes tempos e para as respostas e linguagens artísticas que estes tempos
exigem, com uma clarividência que eu já não tenho. Da maneira como eu olho para
o tecido teatral e para a prática teatral, formatada nos modos antigos como as
coisas normalmente se faziam, e que colidem a maior parte das vezes com a forma
como as coisas estão organizadas agora e que são quase linguagens
inconciliáveis com esses modelos. É por isso que acho que são estes novos agentes
teatrais que vêm capacitados para responderem de uma maneira diferente. Não
desfazendo em todos os agentes teatrais da minha geração, mais velhos até, que
fazem teatro e que têm um olhar diferente daquele que é suportado pelas novas
gerações. Aliás, esse é um diálogo fundamental que tem de ser feito...
M.L: Participou no drama noir “Ornamento e Crime” de Rodrigo Areias e que para mim foi um
dos melhores filmes de 2015. Como foi para si fazer parte de um projeto que é
uma homenagem tanto ao género noir
como ao falecido arquiteto Fernando Távora?
A.D: Aqui está um projeto que eu adorei fazer. Recordo-me
perfeitamente que eu estava muito condicionado pelas inúmeras coisas que estava
a fazer nesse momento e eram mesmo muitas, mas foi com a paciência do Rodrigo, o
realizador/produtor, que foi sendo sensível às minhas dificuldades de tempo
naquele momento e foi capaz de articular a produção também com a minha menor
disponibilidade neste ou naquele momento, embora estivesse disponível
naturalmente. É um projeto que está a fazer o seu percurso, creio que já foi
visto em vários sítios e tem mesmo uns quantos prémios em vários festivais, em
vários sítios, o que me dá um prazer muito grande claro, mas que eu acho que
ainda assim não corresponde ao prazer que tive naquele momento. Foram dias
muito bem passados com aquela equipa muito gira, muito boa, muito profissional
e foi fantástico. E ver o filme também foi muito interessante. Fui vê-lo no
Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira e foi muito
divertido voltar a encontrar lá as pessoas todas que fizeram o filme e vê-lo e
ver o resultado do trabalho que fizemos foi muito gratificante.
M.L: Numa era profundamente tecnológica e com a
cultura da celebridade, ser ator/atriz ainda é um desafio enorme tanto para os
mais velhos como para os mais novos na sua opinião?
A.D: Eu acho que agora é que é. Quando eu comecei e quis ser ator
e comecei a fazer teatro, o máximo que tínhamos garantido era um caminho e um
futuro muito pouco risonho tal as dificuldades financeiras que se adivinhavam. Havia
só dois canais de TV e portanto esta ideia romântica do ator como celebridade
não existia ou, se existia, estava confinada a uma meia-dúzia de pessoas que
criaram, digamos, essa imagem por força do trabalho que foram desenvolvendo, claro,
e porque a televisão que existia também lhes deu esse reconhecimento. Com a proliferação
das televisões e agora também o cabo, isso ganhou contornos absolutamente
impensáveis nessa altura, na altura em que comece. Mas na verdade, mesmo hoje,
isso acontece com um grupo de atores, não acontece com a generalidade dos
atores. Acho que quem faz só teatro dificilmente terá o reconhecimento do
grande público, o que não significa que não tenha o reconhecimento dos seus
pares. Uma coisa não tem exatamente a ver com a outra, o reconhecimento não se
mede aos palmos, isto é, com likes e
considerações semelhantes. Mas hoje eu sei que há muita gente que chega às
escolas de teatro com o objetivo claro de serem reconhecidos. Mas também sei
que muitos que querem ter esse objetivo nem sequer vão para as escolas, fazem
um percurso completamente diferente para chegarem rapidamente à batalha
televisiva. Mas há muita gente que chega à escola com os sonhos que eu tinha e
que, basicamente, se resumiam a coisas simples: salvar o mundo pelo teatro.
M.L: Qual é a coisa que gostava de fazer e não tenha
feito ainda nesta altura da sua vida?
A.D: Eu acho que ainda me falta fazer tudo, porque
estes 32 anos passaram muito rapidamente.ML
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